FM A pergunta inicial é um
lugar-comum: como surge um poeta? Porém eu queria tratar do tema mesclando
antecedentes, afinidades e aquele momento em que te descobres tocado pela
condição de poeta e inclusive observar a existência de um convívio expressivo
com outras artes e a própria interferência da experiência existencial. É
possível?
FE Há na pergunta indícios
que apontam para certo biografismo. Confesso-me avesso a esse pendor. A meu
ver, poeta, recorrendo ao étimo, é aquele que faz. E esse "fazer",
esse acto de "estar a fazer", abandona-o a um grau tal de solidão que
passa a ser solitário mesmo de si próprio. Ou, por outras palavras, quase
anulado enquanto indivíduo. Antes e depois disso é um sujeito como outro qualquer,
acaso inclinado a cair nesse abandono a qualquer instante.
Afinidades? Sim,
sobretudo no período de formação: O Século de Ouro espanhol, a geração de 98 e
a de 27, o Padre António Vieira.
Quanto ao convívio com
outras artes, mormente as visuais e a música, não foram só importantes como se
poderiam considerar afinidades ao mesmo título que as literárias.
FM Tua defesa valiosa
acerca do ofício e da compreensão das relações entre virtude e hábito, de
alguma maneira pode ser interpretada como rejeição a uma atitude espontânea que
muitos entenderam como uma atitude irresponsável, da parte do surrealismo, no
que respeita ao tratamento da linguagem poética?
FE Retomando a imagem de
Sta. Teresa de Jesus poder-se-ia dizer que também na poesia há muitas moradas.
O surrealismo é uma delas. Porque deveria ele ser rejeitado? Tanto mais que, de
há muito, lá foram beber poetas, de língua portuguesa ou não, sem serem
considerados surrealistas puros. Um bom exemplo disso seria Vicente Aleixandre,
poeta da geração de 1927, para não falar de Gerardo Diego, que também por lá
passou. Quanto a mim, digamos que a minha morada não é essa, embora seja
arriscado qualquer poeta afirmar que ficou imune a tal experiência. Nem os
primeiros surrealistas se julgaram de tão originais que não procurassem
pioneiros “avant la lettre” em poetas anteriores, por exemplo, Lautréamont.
Isso viria talvez validar o pensamento daqueles que acham que não há saltos
significativos na história da literatura.
De resto “ofício” há-o
em qualquer espécie de poesia. Ninguém deixa de estar atento e, se necessário,
corrigir o que, acaso, julgar frouxo num poema em determinada altura.
Já as relações entre
virtude – no sentido primeiro do termo: força – e hábito (e não habituação)
apontam para uma teoria tomista da arte, consistindo esta, digamos, no caminho
que vai, passe a palavra, da concepção até à realidade da obra como facto
exterior. Na verdade ofício,
se atendermos ao seu étimo, significa “fazer” vencendo um obstáculo, como aliás
poesia, na sua acepção grega primitiva.
FM A preocupação com a
língua, imaginação simbólica, experimentos etimológicos, dentre outros casos,
isto evidente não define a essência de uma poética. Contudo, são aspectos
referidos pela crítica quando trata de tua poesia. Uma voz intensa e ulterior
cuja raiz interroga por sua relação com o símbolo, a metafísica e todo um
conjunto de sensações as mais cotidianas e mesmo vulgares, eis um feixe que
também se deve considerar ao definir uma poética. Neste sentido indago o que
ela, a poesia, assim entendida como uma entidade evocada, busca comunicar a
partir de Fernando Echevarría?
FE Se a critica o vê é de
supor que lá esteja. Isso, no entanto, não pressupõe um projecto prévio. O
facto de haver vestígios de simbolismo – e há-os em quase todas as correntes
poéticas – quererá, acaso, dizer que ele é, de certo modo, consubstancial, no
sentido em que Jorge Guillén afirma que símbolo “é o que é e algo mais”. Este
“algo mais” seria aquilo que se acrescenta à “língua comercial”, segundo a
expressão de Mallarmé, entendendo-se por “língua comercial” a da fala
quotidiana. Poder-se-ia dizer que se trata de uma possível definição de poesia.
De todos os demais elementos referidos haverá resquícios também, quer porque me
interesso por filosofia quer, sobretudo, por me parecer que a entrega à poesia
se assemelha a uma espécie de exercício espiritual.
FM E de que maneira esses
elementos se particularizam em um livro como Uso
de Penumbra? Distingue-se em algo do restante da criação de tua poesia?
FE Uso de Penumbra é, de facto, um caso
particular, mas não tanto como poderia parecer à primeira vista. Nos restantes
livros trata-se de fazer entrar tudo para "O LIVRO" dado que
"tudo no mundo existe para vir dar NELE" enquanto realidade primeira,
ou seja, aquela em que o homem encontrou o pasmo por primeira vez ao deparar
com a terra. A pintura, a escultura, a música são, digamos assim, realidades
segundas, pois acrescentadas à criação primeira pelo mesmo homem. Mas
inegavelmente reais também e, por isso, deviam necessariamente entrar para ali.
FM Eu quero insistir na
leitura do surrealismo por uma razão: a intensidade alcançada pela linguagem
convulsiva do mesmo no diálogo com uma tradição essencialmente barroca da
poesia na América Latina. Sem esta profunda identificação não se pode
compreender o surrealismo existente na poesia de poetas como os brasileiros
Jorge de Lima e Murilo Mendes, dos argentinos Enrique Molina e Francisco
Madariaga, dos peruanos César Moro e Emilio Adolfo Westphalen, e do chileno
Ludwig Zeller, sobretudo. O transbordamento barroco em muitos casos é entendido
como decorativo. Já o mesmo componente no surrealismo se interpreta como
delirante (dando ao termo uma conotação depreciativa). Nos dois casos, o que me
parece legítimo é o sentido de transfiguração da linguagem, de instauração de
um grau superlativo de percepção da realidade. Excessos de configuração de
linguagem nós encontramos nas duas tendências, como em quaisquer outras. Como
observas esta relação entre duas correntes e de que maneira entendes que certa
obsessão racionalista seja critério válido para explicar os obstáculos
encontrados pelo surrealismo para atuar em Portugal?
FE Se algo obstasse ao
“transbordamento barroco” teríamos de suprimir o Século de Ouro espanhol, e que
faríamos de Lautréamont? Deita-lo-íamos pela borda fora? O único crivo
verdadeiro é dado pelo tempo e, mesmo com esse, são precisos cuidadosos apuros.
O Góngora foi tido durante séculos, por uma espécie de cesto do lixo, apto
apenas para receber o que não prestava. Até a geração de 27 o reabilitar, como
ao Século de Ouro em geral. Convém preservarmo-nos de enterros precipitados.
Quanto à obsessão
racionalista, estamos falados. O caso português, neste aspecto, quererá dizer
quiçá que ele fez o seu trabalho e continua de certo modo vivo em poetas como
Pedro Tamen e outros até. E quem nos diz que ele não regressará? A história
literária está cheia destes retornos.
FM Tua condição de exilado
durante certo período da história política de teu país de alguma maneira
propiciou uma maior clareza no entendimento das relações entre ambientes
internos e externos no que diz respeito a confluências estéticas e políticas
culturais. Quais afinidades eletivas entre Portugal e Espanha sobrevivem a suas
dissensões provincianas?
FE O conflito latente entre
Portugal e Espanha não o senti nunca. A formação humanística em Portugal, o
resto em Espanha tornaram-no impraticável. Terá contribuído para isso a minha
ascendência luso-espanhola. Na literária, porém, prevalece a espanhola, porque
ali nasci para a poesia: O Século de Ouro, o teatro de Calderón de la Barca, as
gerações de 98 e 27 foram o meu terreno de dilecção, como em Portugal o foi
António Vieira.
Qual a influência do
exílio em tudo isto? Suponho que a modulação duma língua de exílio que a
península ibérica conheceu desde cedo. O resto, o exílio político, pertence à
acção cidadã e à luta pela implantação da democracia. E fica por aí.
FM Maria João Reynaud observa que a matriz
de tua poesia é essencialmente hispânica. Isto reforça uma herança simbolista.
O livro (ou obra efetivamente criada) se apresenta neste caso com uma mundificação da criação em si. Como dimensionar o
abismo entre mundificação e modificação, tanto do mundo de que
subjetivamente trata como de sua ansiedade (do criador) de objetivar-se como
parte deste mundo que julga habitar?
FE É-o de facto. A mundificação a que se refere tem mais a ver com
Heidegger, com o projecto mallarmeano de “O LIVRO” e mesmo com o verso de um
poema de Hölderlin intitulado “LEMBRANÇA” e citado pelo filósofo: “mas só os
poetas fundam o que permanece”. Para Mallarmé “tudo, no mundo, existe para vir
dar num livro”, sendo o livro de poemas, dado que acrescenta, linhas depois,
que esse livro deve ser “o hino, harmonia e júbilo, como conjunto puro… das
relações entre tudo”. Nele encontraríamos, pois, essa “mundidade” do mundo ou,
por outras palavras, uma espécie de ontologia generalizada. Porquê? Porque,
segundo Mallarmé ainda, a passagem do mundo ao poema implica “uma
transposição”, não transposição de “qualidade abstraída”, mas a “transportar”
que “alguma idéia incorpora”. De aí falar-se da “mundidade do mundo”. Noutros
termos, abstrai-se a mundidade ao mundo para o poema lha restituir intacta em
si mesmo. É neste sentido que o poema funda,
como queria Hölderlin. Antes dele o mundo não passava de uma espécie de
realidade vacante, abandonada, de certa maneira, ao curso cíclico do
perecedouro que não perdura senão na renovação constante do ciclo. A fundação
seria, assim, a passagem desse limbo de “vacância” a poema. Poema que leva em
si, e incontestável, a sua própria evidência. A modificação ficaria a pertencer
a esse ciclo de renovação constante.
FM Quero refletir agora
sobre o que chamas de a dádiva da leitura, este sentido de entrega que completa
e dá sentido maia amplo à criação. Este exercício espiritual naturalmente
transcende o ambiente institucional de qualquer religião. Como observas o tema?
FE Miguel Torga deu a um
livro seu o título felicíssimo de "NIHIL SIBI". Nesta perspectiva o
poeta escreveria para os outros. Tratar-se-ia de dádiva "a
posteriori". Ou implícita.
Quando falo de exercício
espiritual a alusão tem um sentido analógico. Mas seria quiçá empobrecedor
esquecer que, queiramos ou não, vivemos numa civilização cristã, embora na
América Latina ela venha imbuída de elementos originais.
FM Esquecemos algo?
FE Muita coisa, com
certeza. Esperemos que o leitor encontre o resto do nosso esquecimento.
[2008]
[Posfácio do livro Uso de penumbra, de Fernando
Echevarría. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da
Escrituras Editora. São Paulo, 2008.]
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