quinta-feira, 21 de agosto de 2014

FERNANDO ECHEVARRÍA | A dádiva da leitura



FM A pergunta inicial é um lugar-comum: como surge um poeta? Porém eu queria tratar do tema mesclando antecedentes, afinidades e aquele momento em que te descobres tocado pela condição de poeta e inclusive observar a existência de um convívio expressivo com outras artes e a própria interferência da experiência existencial. É possível?

FE Há na pergunta indícios que apontam para certo biografismo. Confesso-me avesso a esse pendor. A meu ver, poeta, recorrendo ao étimo, é aquele que faz. E esse "fazer", esse acto de "estar a fazer", abandona-o a um grau tal de solidão que passa a ser solitário mesmo de si próprio. Ou, por outras palavras, quase anulado enquanto indivíduo. Antes e depois disso é um sujeito como outro qualquer, acaso inclinado a cair nesse abandono a qualquer instante.
Afinidades? Sim, sobretudo no período de formação: O Século de Ouro espanhol, a geração de 98 e a de 27, o Padre António Vieira.
Quanto ao convívio com outras artes, mormente as visuais e a música, não foram só importantes como se poderiam considerar afinidades ao mesmo título que as literárias.


FM Tua defesa valiosa acerca do ofício e da compreensão das relações entre virtude e hábito, de alguma maneira pode ser interpretada como rejeição a uma atitude espontânea que muitos entenderam como uma atitude irresponsável, da parte do surrealismo, no que respeita ao tratamento da linguagem poética?

FE Retomando a imagem de Sta. Teresa de Jesus poder-se-ia dizer que também na poesia há muitas moradas. O surrealismo é uma delas. Porque deveria ele ser rejeitado? Tanto mais que, de há muito, lá foram beber poetas, de língua portuguesa ou não, sem serem considerados surrealistas puros. Um bom exemplo disso seria Vicente Aleixandre, poeta da geração de 1927, para não falar de Gerardo Diego, que também por lá passou. Quanto a mim, digamos que a minha morada não é essa, embora seja arriscado qualquer poeta afirmar que ficou imune a tal experiência. Nem os primeiros surrealistas se julgaram de tão originais que não procurassem pioneiros “avant la lettre” em poetas anteriores, por exemplo, Lautréamont. Isso viria talvez validar o pensamento daqueles que acham que não há saltos significativos na história da literatura.
De resto “ofício” há-o em qualquer espécie de poesia. Ninguém deixa de estar atento e, se necessário, corrigir o que, acaso, julgar frouxo num poema em determinada altura.
Já as relações entre virtude – no sentido primeiro do termo: força – e hábito (e não habituação) apontam para uma teoria tomista da arte, consistindo esta, digamos, no caminho que vai, passe a palavra, da concepção até à realidade da obra como facto exterior. Na verdade ofício, se atendermos ao seu étimo, significa “fazer” vencendo um obstáculo, como aliás poesia, na sua acepção grega primitiva.

FM A preocupação com a língua, imaginação simbólica, experimentos etimológicos, dentre outros casos, isto evidente não define a essência de uma poética. Contudo, são aspectos referidos pela crítica quando trata de tua poesia. Uma voz intensa e ulterior cuja raiz interroga por sua relação com o símbolo, a metafísica e todo um conjunto de sensações as mais cotidianas e mesmo vulgares, eis um feixe que também se deve considerar ao definir uma poética. Neste sentido indago o que ela, a poesia, assim entendida como uma entidade evocada, busca comunicar a partir de Fernando Echevarría?

FE Se a critica o vê é de supor que lá esteja. Isso, no entanto, não pressupõe um projecto prévio. O facto de haver vestígios de simbolismo – e há-os em quase todas as correntes poéticas – quererá, acaso, dizer que ele é, de certo modo, consubstancial, no sentido em que Jorge Guillén afirma que símbolo “é o que é e algo mais”. Este “algo mais” seria aquilo que se acrescenta à “língua comercial”, segundo a expressão de Mallarmé, entendendo-se por “língua comercial” a da fala quotidiana. Poder-se-ia dizer que se trata de uma possível definição de poesia. De todos os demais elementos referidos haverá resquícios também, quer porque me interesso por filosofia quer, sobretudo, por me parecer que a entrega à poesia se assemelha a uma espécie de exercício espiritual.

FM E de que maneira esses elementos se particularizam em um livro como Uso de Penumbra? Distingue-se em algo do restante da criação de tua poesia?
FE Uso de Penumbra é, de facto, um caso particular, mas não tanto como poderia parecer à primeira vista. Nos restantes livros trata-se de fazer entrar tudo para "O LIVRO" dado que "tudo no mundo existe para vir dar NELE" enquanto realidade primeira, ou seja, aquela em que o homem encontrou o pasmo por primeira vez ao deparar com a terra. A pintura, a escultura, a música são, digamos assim, realidades segundas, pois acrescentadas à criação primeira pelo mesmo homem. Mas inegavelmente reais também e, por isso, deviam necessariamente entrar para ali.

FM Eu quero insistir na leitura do surrealismo por uma razão: a intensidade alcançada pela linguagem convulsiva do mesmo no diálogo com uma tradição essencialmente barroca da poesia na América Latina. Sem esta profunda identificação não se pode compreender o surrealismo existente na poesia de poetas como os brasileiros Jorge de Lima e Murilo Mendes, dos argentinos Enrique Molina e Francisco Madariaga, dos peruanos César Moro e Emilio Adolfo Westphalen, e do chileno Ludwig Zeller, sobretudo. O transbordamento barroco em muitos casos é entendido como decorativo. Já o mesmo componente no surrealismo se interpreta como delirante (dando ao termo uma conotação depreciativa). Nos dois casos, o que me parece legítimo é o sentido de transfiguração da linguagem, de instauração de um grau superlativo de percepção da realidade. Excessos de configuração de linguagem nós encontramos nas duas tendências, como em quaisquer outras. Como observas esta relação entre duas correntes e de que maneira entendes que certa obsessão racionalista seja critério válido para explicar os obstáculos encontrados pelo surrealismo para atuar em Portugal?

FE Se algo obstasse ao “transbordamento barroco” teríamos de suprimir o Século de Ouro espanhol, e que faríamos de Lautréamont? Deita-lo-íamos pela borda fora? O único crivo verdadeiro é dado pelo tempo e, mesmo com esse, são precisos cuidadosos apuros. O Góngora foi tido durante séculos, por uma espécie de cesto do lixo, apto apenas para receber o que não prestava. Até a geração de 27 o reabilitar, como ao Século de Ouro em geral. Convém preservarmo-nos de enterros precipitados.
Quanto à obsessão racionalista, estamos falados. O caso português, neste aspecto, quererá dizer quiçá que ele fez o seu trabalho e continua de certo modo vivo em poetas como Pedro Tamen e outros até. E quem nos diz que ele não regressará? A história literária está cheia destes retornos.

FM Tua condição de exilado durante certo período da história política de teu país de alguma maneira propiciou uma maior clareza no entendimento das relações entre ambientes internos e externos no que diz respeito a confluências estéticas e políticas culturais. Quais afinidades eletivas entre Portugal e Espanha sobrevivem a suas dissensões provincianas?

FE O conflito latente entre Portugal e Espanha não o senti nunca. A formação humanística em Portugal, o resto em Espanha tornaram-no impraticável. Terá contribuído para isso a minha ascendência luso-espanhola. Na literária, porém, prevalece a espanhola, porque ali nasci para a poesia: O Século de Ouro, o teatro de Calderón de la Barca, as gerações de 98 e 27 foram o meu terreno de dilecção, como em Portugal o foi António Vieira.
Qual a influência do exílio em tudo isto? Suponho que a modulação duma língua de exílio que a península ibérica conheceu desde cedo. O resto, o exílio político, pertence à acção cidadã e à luta pela implantação da democracia. E fica por aí.

FM Maria João Reynaud observa que a matriz de tua poesia é essencialmente hispânica. Isto reforça uma herança simbolista. O livro (ou obra efetivamente criada) se apresenta neste caso com uma mundificação da criação em si. Como dimensionar o abismo entre mundificação e modificação, tanto do mundo de que subjetivamente trata como de sua ansiedade (do criador) de objetivar-se como parte deste mundo que julga habitar?

FE É-o de facto. A mundificação a que se refere tem mais a ver com Heidegger, com o projecto mallarmeano de “O LIVRO” e mesmo com o verso de um poema de Hölderlin intitulado “LEMBRANÇA” e citado pelo filósofo: “mas só os poetas fundam o que permanece”. Para Mallarmé “tudo, no mundo, existe para vir dar num livro”, sendo o livro de poemas, dado que acrescenta, linhas depois, que esse livro deve ser “o hino, harmonia e júbilo, como conjunto puro… das relações entre tudo”. Nele encontraríamos, pois, essa “mundidade” do mundo ou, por outras palavras, uma espécie de ontologia generalizada. Porquê? Porque, segundo Mallarmé ainda, a passagem do mundo ao poema implica “uma transposição”, não transposição de “qualidade abstraída”, mas a “transportar” que “alguma idéia incorpora”. De aí falar-se da “mundidade do mundo”. Noutros termos, abstrai-se a mundidade ao mundo para o poema lha restituir intacta em si mesmo. É neste sentido que o poema funda, como queria Hölderlin. Antes dele o mundo não passava de uma espécie de realidade vacante, abandonada, de certa maneira, ao curso cíclico do perecedouro que não perdura senão na renovação constante do ciclo. A fundação seria, assim, a passagem desse limbo de “vacância” a poema. Poema que leva em si, e incontestável, a sua própria evidência. A modificação ficaria a pertencer a esse ciclo de renovação constante.

FM Quero refletir agora sobre o que chamas de a dádiva da leitura, este sentido de entrega que completa e dá sentido maia amplo à criação. Este exercício espiritual naturalmente transcende o ambiente institucional de qualquer religião. Como observas o tema?

FE Miguel Torga deu a um livro seu o título felicíssimo de "NIHIL SIBI". Nesta perspectiva o poeta escreveria para os outros. Tratar-se-ia de dádiva "a posteriori". Ou implícita.
Quando falo de exercício espiritual a alusão tem um sentido analógico. Mas seria quiçá empobrecedor esquecer que, queiramos ou não, vivemos numa civilização cristã, embora na América Latina ela venha imbuída de elementos originais.

FM Esquecemos algo?

FE Muita coisa, com certeza. Esperemos que o leitor encontre o resto do nosso esquecimento.

[2008]

[Posfácio do livro Uso de penumbra, de Fernando Echevarría. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2008.]

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