FM Há um aspecto que
sempre soa curioso em relação à opção estética de um criador, o que o levou a
dar mais atenção a uma zona de criação. Em teu caso, a canção popular. Qual é o
mapa da mina?
GBP Bom, talvez devesse
falar antes do território para depois chegar à mina. Antes da ilha-canção, a
música como oceano. Alguém já disse que todas as artes aspiram à condição da
música, a música que o filósofo Plotino considerava como um caminho para se
chegar a Deus, a música que prescindiria da matéria e se tornaria contemplação
da harmonia divina, como queria Santo Agostinho. A música, deste ângulo, seria
a via de acesso ao Absoluto. Todos nós sentimos isso em relação à música de
Bach, de tantos gênios da história. É sempre mais legal falar do aspecto
sensorial do que falar da música como técnica. No princípio, existe o mito da
canção de Ur, na antiga Caldeia, a canção como sensação do objeto primevo,
aquela que o bebê balbucia ainda no berço. Este é um mito romântico, mas no
campo das artes eu acho que a metafísica é sempre mais importante, toda arte se
move no campo do sensível e para além dele. E nesse
aspecto, me parece que a música leva vantagem em relação às outras artes. Quero
dizer que é muito mais fácil um garoto se apaixonar primeiro pela música,
principalmente se levarmos em conta sua relação com a indústria do
entretenimento.
Certamente a ideia de escolha deve ter surgido
quando a aventura já estava em pleno curso. Deve ser algo inconsciente,
voltando ao caráter atávico da coisa. Falar da música é falar da infância, no
caso a nossa infância em Fortaleza, a minha e do Caio, meu irmão, pois ambos
nos apaixonamos nas mesmas circunstâncias. Muito cedo ouvimos Chopin quase que
simultaneamente aos Beatles e Roberto Carlos. Minhas irmãs estudaram piano
clássico e depois veio o Aulo, o mais novo, que já começou compondo canções
surpreendentes. Eu falo dos elos porque a música, e mais fortemente a canção
tem essa capacidade de oferecer fruição individual e coletiva, da participação
do corpo, de quem embarca por um breve momento nessa cápsula sensorial feita de
versos, melodia, ritmo e harmonia. A música, e, dentro dela, a canção, nos dá a
oportunidade de pertencer a um pequeno casulo de identidade e de uma realidade
sobre a qual endossamos o discurso do autor, nos emocionamos. É algo muito
real, é pura experiência ou retorno à experiência vivida. Marca uma vida, a
vida de todos. O corpo também canta e dela fica impregnado. Enquanto cantamos
ou tocamos, estamos em nós mesmos e ao mesmo tempo muito longe, pois enquanto isso
acontece nos abstraímos para outra realidade. A canção, para mim, talvez não
viesse sem o Caio, pois ele foi o primeiro a compor, a me despertar a vontade
de fazer o mesmo. Fazia músicas lindas e eu tentava também conseguir aquilo.
Com a cabeça nas meninas e todos os hormônios viajando em Beatles e tantas
vozes do rádio ninguém poderia resistir. Eis a canção, a guitarra e a estrada.
Aliás, “Eis a canção”, não por acaso é o título que o compositor Mário Montaut
deu à nossa primeira parceria. E, veja que sincronia: por falar em Beatles, na
alteração da dinâmica interna da canção ela foi depois rebatizada como “Para
sempre campos de algodão”. Não é bonito? Tem também este outro aspecto
belíssimo: dependendo da interpretação e da execução, a canção se transforma.
Não seria exagero dizer que ela pode operar uma transfiguração do momento.
Nesse caso a voz, sua cor, sua malha, suas particularidades têm um papel também
decisivo. Uma bela canção é um gesto prolongado, uma declaração da vida ao
mundo.
FM O que chamamos de
canção popular já perdeu os vestígios de sua origem. O mercado transformou em
canção popular um produto imposto ao consumidor. Isto faz, dentre outros
prejuízos, com que ela expresse o roteiro de uma campanha publicitária, e não
que surja como referente de uma indigestão social. No entanto, essas preciosas
são assinadas por alguém. O que significa hoje ser um compositor de canções
populares?
GBP Mais uma questão
difícil, muito aberta. A canção é soberana. Sempre haverá a questão do talento,
ou seja, a questão primordial. Não é a alteração das regras do jogo imposto
pela indústria que vai enfraquecer o gênero, destruir talentos. Nesse momento,
com certeza temos um cenário ruim, um desestímulo aos grandes autores e
cantores em favor de uma porcaria assombrosa. A indústria vende o que a
sociedade cria. Seu pecado mesmo é a reiteração, a multiplicação do que gera um
mal estar vergonhoso. Esse lamaçal acompanha toda a atomização que vêm sofrendo
as artes num ambiente onde não há horizonte, apenas o foco do momento, o
imediatismo. Não há mais a obra, apenas o “single”, o funk escabroso. Do
trovador da vila medieval, quando a canção foi tomando sua forma, ao trovador
dos links houve uma dispersão do cenário interno, da identidade. Hoje há um
discurso para cada gavetinha do mercado, este senhor sem face, o que parece
inviabilizar aquela ideia antiga da MPB como depositária de um discurso da
sociedade brasileira. A sociedade está mais complexa, o acesso mais fácil e a
elaboração em geral é muito rasteira. Hoje, a relação com a música — não só a
canção — perdeu profundidade. O enfraquecimento da indústria e a vulgarização
da gravação de discos geraram um nível de produção cuja absorção é impossível.
Ironicamente, downloads são feitos numa escala de fruição impossível. Está tudo
muito confuso. O discurso publicitário está muito evidente. Por natureza ele é
uma redução e isso rima com a pobreza cultural do Brasil, por exemplo. Mas
estamos enganados se pensamos ser esse um fenômeno brasileiro. Parece que o
Ocidente se transformou num grande pagode com futebol. Talvez seja cedo para
procurarmos uma palavra final. É hora de dar à palavra “underground”, por
incrível e contraditório que pareça, o seu verdadeiro significado. E devemos
reconhecer que há espaço para tanto. É um espaço que parece aos poucos voltar a
vibrar. Aliás, é preciso também reconhecer que lá atrás o surgimento do cinema
e da indústria fonográfica desempenhou um papel importantíssimo para o
florescimento da canção, aquelas canções e rocks e bandas que fizeram a trilha
sonora de nossas vidas. Mas apesar deste cenário, se formos catar as pedrinhas
veremos que o pop e sua imensa constelação de subgêneros ainda possuem uma
força e presença impressionantes. A canção ainda é o próprio mapa da mina, ou
seja, ela é o território, a identidade e o discurso do habitante, mesmo com a
vulgarização que presenciamos. Resumindo, da invenção do fonógrafo ao download,
a indústria possibilitou uma produção imensa, a criação de várias linguagens
musicais. É sempre difícil unir o micro e o macro. Seria impossível imaginar
Elvis Presley em outro momento, o grito primal de John Lennon não teria tido o
mesmo alcance. O rock já tem sua literatura, a MPB tem sua história e as pedras
continuam rolando. Ser compositor, hoje, pode ser também abdicar de uma ideia
romântica de estrelato e riqueza e reafirmar sua paixão da infância. Os dilemas
da música não estão separados das questões do empobrecimento cultural. Às
vezes, também penso que já tivemos a neurose e que hoje vivemos a necrose. Mas
posições assim tão preto no branco nunca se sustentam.
FM A máxima publicitária “Deus
criou o mundo” fascina a todos os artistas, seres em geral dotados de uma
carência afetiva cujo diapasão espiritual não carece de mistério. Não há
enigma, mas sim pobreza de espírito. Recordo este documentário sobre o Michael
Jackson, que logo no início cita um desejo seu de se tornar o artista mais
popular do mundo. O mundo — mundo é linguagem — é uma entidade muito curiosa.
Certos substantivos abstratos se tornaram violentamente concretos, como o medo.
Em muitos casos a realidade se esfumou, tornando-se uma abstração sem recurso.
Não fazemos uma ideia concreta — exceto a ideia aproximada de todas as épocas —
do que seja o mundo, de conformidade com nosso desejo. Na primeira metade do
século XX o desejo definia o homem. O desejo era evocado em seu sentido de
liberdade. Tornou-se depois um argumento de exploração sexual e consumo. O
erotismo forçado das campanhas publicitárias foi desaguar na prostituição
infantil. Evidente que Deus não criou esse mundo. Dividimos seu legado em três
artérias: a ciência, a arte e a religião. Inventamos um deus para cada uma das
veias. Como circulas por entre os bastidores dessa opereta?
GBP Sinto um enlace de
questões. É muito difícil chegar a juízos pela subjetividade das pessoas. No
caso dos artistas, pior ainda. Olhando bem de perto, é raro encontrarmos um que
não tenha suas fragilidades. Paul Gauguin, inseguro por não ter domínio sobre
anatomia, desenho, se encontrou no primitivismo da Martinica e acabou sendo um
precursor do fauvismo, ele que havia deixado de lado toda a turma do
impressionismo. Foi pioneiro e entrou para a história ao lado de caras como
Henri Matisse e Maurice Vlaminck. Michael Jackson é criatura da engrenagem, da
indústria, mas por ser um grande artista conseguiu inventar a si mesmo, mesmo
com toda fragilidade, esta tão gritante. Não me interesso muito por suas
fraquezas egóicas, não era isso que ele levava para o palco. O mesmo poderia
dizer da fragilidade e insegurança de Marilyn Monroe. Nesse caso, eu vejo muito
mistério em cada diapasão. Não é fácil negar o intérprete, dançarino e show-man
que foi o Jackson, por exemplo. Ele vem de uma linhagem, uma geração que começa
com B. B. King, passa por James Brown e explode para o mundo com a
cristalização da Black Music que foi criada pela Motown Records. Isso é uma
invenção americana assimilada por grande parte do planeta. Penso que a
valorização da liberdade e da expressão self-made man, signos da cultura
capitalista americana, deram vazão à criação de um mundo onde a linguagem que o
conduz é o erotismo e a valorização da liberdade e do desejo. É a sociedade do
espetáculo, do pensador Guy Debord, em que temos que estar atentos para esta
passividade e aceitação de toda representação. Talvez no seu oposto, o mundo
árabe, onde o culto é proibido, onde não há esse apego excessivo a mensagens
publicitárias, gurus de todo tipo, celebridades, atores e políticos não tenha
essa inversão de valores causada pelo consumismo. Mas eu tenho esse defeito, o
de pender para o que é demasiado humano, para o lado do anjo caído. Não seria
capaz de ver essas manifestações apenas como símbolo de degradação. Acho que
ciência é conhecimento e domínio desse conhecimento; arte, vejo como criação,
invenção, a glória do engenho e da subjetividade que aumentam o repertório da
existência. A arte põe no mundo algo que antes não existia. A arte cria mundos,
a ciência os descobre. A arte põe os véus, a ciência os decifra. A religião é a
terceira margem do rio. A fé talvez seja o fenômeno mais poderoso do ser
humano. Quem tem fé não queima o pé. Já passei por fases de ateísmo. Hoje tendo
a ver o mistério como manifestação do divino.
FM O enlace foi
proposital. Na medida em que desatavas o nó, fui recordando umas frases do
Keith Richards que disponho aqui como uma sugestão para a sequência de nossa
conversa: “O talento é não interferir demais”, “Canções se escrevem sozinhas,
você só as transporta”, “Nunca tive dificuldades para compor”. O processo de
criação é sempre uma curiosidade referente à obra de cada criador, para mim uma
intrigante curiosidade, porque o alimento essencial do espírito é a obra em si,
e não seus bastidores. Então, mais do que indagar como crias, sugiro aqui
abordar o que pensas desse talento evocado pelo Richards.
GBP Bom, essas citações são
um barato. Realmente, quando ouvimos canções incríveis, mesmo no caso de
canções de amor tão radicalmente diferentes em suas estruturas e concepções,
como por exemplo, Stand By Me (Bem
King/Jerry Leiber/Mike Stoller) e Luíza (Tom
Jobim), temos a impressão de que elas existem desde sempre, de tão perfeitas
que soam. Existe o mito do autor como um sensitivo que capta as coisas no ar,
como se estivessem feitas. É puro romantismo. Quando ele diz “não interferir”,
na verdade se refere à observação e controle do que está sendo feito, de forma
que a canção ao final soe “redonda”, ou seja, sem arestas, sem elementos
gratuitos. Canções não se escrevem sozinhas. Obviamente, não há termos de
comparação entre as duas, mas é claro que a primeira tem uma forma muito
simplificada em relação à jobiniana Luíza.
Aqui, caberia então chamar atenção do meu inconsciente, que acabou de escrever “jobiniana”.
O que significa que o criador desenvolveu sua escritura, fundou sua obra com
uma linguagem própria, com base em concepções, repertório próprio e talento
tais que ela fez surgir uma nova área no universo das canções. Neste caso, o
processo de criação no mundo pop usa menor número de recursos. Não ter
dificuldades para compor é compor por prazer. O processo da criação é sempre
fascinante, por isso há tanto estudo, hoje, na academia, sobre a gênese da
criação. O apego às anotações sobre o processo de criação da obra. No meu caso,
antes eu demorava pouco tempo para compor uma canção; hoje, minha observação
leva um tempo maior, pois geralmente há o anteprojeto da coisa. Às vezes, a
composição torna-se uma quase obsessão, os acordes podem ter diferentes
desenhos, as palavras também têm sons, vogais que podem soar com pesos
diferentes etc. Fazer tudo soar espontaneamente é sempre um desafio. O João
Gilberto seria o melhor exemplo de obsessão com estes itens. Fazer a coisa sair
da pulsão normal e ser lapidada na execução é algo sem fim. E há também a
letra, a poesia que o canto enuncia, da maior importância. No final, como você
já disse, o que conta é a obra em si. Destaco aqui minhas canções com Caio Sílvio,
com o Floriano Martins, Aulo Sílvio, com Belchior, com o poeta Ricardo
Alcântara e os compositores Mário Montaut e Cássio Gava, com estes últimos
parcerias que apenas iniciamos. É um processo de afinidade bonito. No meu caso,
minhas parcerias com o Caio Silvio, por exemplo, me são muito importantes.
Neste caso, minha participação é sempre como letrista, o Caio é um compositor
de inúmeros recursos. Já quando componho para os seus versos, por exemplo,
tento me embalar na linguagem do poeta Floriano Martins, o que é um outro
prazer, pois conhecemos profundamente nossas predileções e eu gosto muito
quando recebo uma letra em espanhol.
FM Em meio a este ambiente
das parcerias eu queria destacar uma delas, no caso da cumplicidade com o
Daniel Taubkin, para o disco A Picture Of
Your Life, quanto ao aspecto de que as letras foram resultado de mergulho
em outro idioma. Escrever em uma língua que não é a sua ajuda a iluminar os
argumentos da escrita?
GBP Escrever em outra
língua é transportar-se, antes, para outra cultura. É um atrevimento. Nesse
caso, o trabalho resultou de termos uma formação musical muito parecida.
Obviamente não foi nada fácil, tivemos sempre a leitura crítica do produtor do
disco, o Roy Cicala, americano que produziu discos de grandes celebridades e
hoje mora no Brasil. Tanto o inglês como o espanhol têm uma belíssima
sonoridade. Conhecer expressões e a tradição daquele cancioneiro ajuda a entrar
na levada que tem cada canção, mas é sempre aquela coisa da página em branco. As resenhas
sobre o disco, lançado nos EUA, Europa e Japão nos deixaram muito satisfeitos.
FM Em uma conferência que
deu em Viena, em 1999, o compositor Nick Cave faz uma bela analogia entre música
e silêncio: “Se o mundo fosse ficando silencioso repentinamente Deus seria
desconstruído e morreria”. Esta conferência é valiosa, porque ele trata muito
sabiamente acerca da canção de amor, do ato criativo visto a partir da tristeza
(“a canção de amor é uma música triste, é o próprio som da tristeza”) e da
teoria do duende defendida por García
Lorca e uma densa tradição na canção de língua inglesa — Bob Dylan, Leonard
Cohen, Tom Waits, Neil Young, Van Morrison — que lhe é devedora.
GBP Que maravilha esta
citação do Nick Cave. Acho que também somos herdeiros da tradição inglesa,
assim como os EUA, estes de forma mais acentuada. A canção de amor, sendo de
alta voltagem é imbatível. É um desses artefatos que me fazem crer na
perenidade do gênero. Todos esses caras são fantásticos. Devemos a eles grandes
momentos. A canção de amor é um ajuste de contas momentâneo. Como canção, ela
acontece na redundância, na chegada ao clímax do refrão, que ganha força na sua
reiteração. Não que a canção tenha uma forma definida e imutável. O mistério de
canções assim é que depois de feitas parecem tão simples. De fato, há como que
uma repetição do esquema, uma quase pobreza harmônica na utilização de poucos
acordes, coisa que foi superada entre nós pelo refinamento vindo da bossa nova.
Mas quando se vai fazer, meu velho, adeus facilidade. Fosse tão fácil assim não
teríamos todos nós compositores um leque considerável de começos de canções,
pedaços delas e outros projetos que ainda não foram concluídos.
Essa metáfora de Nick Cave deve se referir a uma
concepção mais oriental da paz e do mistério da existência. É algo muito comum
entre músicos que tentam uma iniciação ao zen budismo. Sobre a teoria do
duende, do poeta espanhol Garcia Lorca, é uma bela metáfora para falar da arte
espanhola, especialmente a música e a dança flamencas como uma fonte de prazer
visceral características da cultura espanhola. O duende, para nós, seria como “estar
com a macaca” ou “estar possuído”. É, no fundo, uma afirmação do caráter
distintivo que tem a interpretação, essa ideia que no linguajar moderno se fala
“performance”. Temos poucos cantores entre nós que cantam com esse duende.
Aliás, a bossa nova é uma domesticação, um refinamento desse bicho. A dança, o
cantar dramático e a poesia espanhola têm na canção de amor uma das grandes
manifestações de sua arte.
FM De onde remontam as
tuas afinidades musicais? Que música ouvias na infância e que percebes tenha
sido de boa influência em tuas escolhas musicais?
GS Como um fenômeno
familiar, nossas afinidades — minha, do Caio e do Aulo são as mesmas, com
poucas preferências mais distintas. Donde se vê a importância do meio. Não
temos nada a ver com samba, chorinho etc. Nossa área é mais da música
brasileira a partir dos anos 1960, com uma pegada forte nos ’70, base de nossa
formação. No meu caso, com a vinda para São Paulo passei a me interessar muito
por uma área de canções sofisticadas feitas por compositores que vinham de um
ambiente jazzístico. Tudo isso foi gradativamente soldado à minha formação de
música brasileira. É o ciclo comum a todos; a diferença são as preferências.
Pode parecer estranho ou esnobe, mas não é. Minha geração não foi afeita à
sensibilidade telúrica do canto sertanejo, àquelas visões e formas — bonitas e
preciosas — comuns a um universo onde a tradição da poesia moura que há no
Nordeste de certa forma ainda se impõe. É neste ponto que podemos acrescentar,
porque propomos naturalmente um sincretismo. Não fazemos a repetição, mas
criamos um corpo de canções onde esta leitura não se apresenta em primeiro
plano. Em situação alguma abrimos mão de nossas referências, da modernidade.
Canções de nossas autorias que tiveram sucesso nos deram uma resposta muito
feliz acerca dessas músicas. Como, por exemplo, Noturno, conhecida como “Coração Alado”, tema da novela homônima.
GBP Tens uma leitura muito
elegante acerca da barbárie que estamos criando em cativeiro privado. Nós que
nascemos nos anos ’50 no Brasil fomos atropelados por certa virulência já
ajustada em linha nos ’80 e piorada gradativamente. Eu gostaria de te ouvir
falando de algumas dessas canções, seu alcance, essa resposta feliz que
mencionas.
GS Talvez tenhamos sido
salvos pela arte, se é que fomos salvos. A barbárie talvez seja a mesma de
sempre. Talvez nossa singularidade — que perante o mundo escapa ao trágico como
uma manifestação de alegre potência — possa ser expressa numa questão: como um
país de baixa cultura como o Brasil pôde transformar um artefato de alta
sofisticação como a bossa nova em produto de massa? Hoje, sua influência
internacional é indiscutível. Para nossa surpresa, o Paul McCartney declarou
que pretende vir ao Brasil e gravar com músicos da bossa nova. É um argumento a
que recorro para tentar responder a pergunta, apesar de minha formação pop.
Poderia pinçar algumas canções que surgiram como bandeiras, quando geralmente
elas aparecem como um delicioso cobertor com o qual nos embalamos. Cito Like a Rolling Stone, do bardo Dylan,
uma canção de 1965, com mais de seis minutos de versos demolidores, que
demonstrou sua incrível força marcando nossa geração e o mundo de forma
inquestionável, com reverberações até nossos dias.
FM A cronologia é o
ambiente natural da história e a exploração conveniente do mercado. Entre o
novo demais para morrer e velho demais para viver, a retórica oscila sem
desconectar o cinismo automático. São reais as conexões que já mencionaste com
a pobreza espiritual brasileira e o desgaste de certa mecânica cultural do
Ocidente. Qual o relato possível de sobrevivência a tudo isto?
GBP Alguém já falou que a
retórica é a mais perigosa de todas as armas. Este assunto — a decadência — me
parece sempre uma questão da ética. O cinismo a que você se refere antes é a
regra, não somente no Brasil. Não sou economista, mas toda essa crise na Europa
e na comunidade do Euro, por exemplo, me parece antes um problema da ética.
Como diz o Belchior, numa de nossas parcerias, “O dinheiro é um deus cruel”, e
a política seu servo fiel. Precisaríamos de homens, no lugar dos políticos.
Acho que esse é um movimento circular. A rigor não há novidade, nos iludimos
com as surpresas e as possibilidades que chegam com as tecnologias, mas a
tortura e o massacre de crianças, como vemos hoje na Síria sempre podem estar
no horizonte.
FM Chegamos ao Kizumba-Mass como quem abre a página de
um manifesto. Em um ambiente de novas mídias, como tornar esse disco acessível
atualmente?
GBP Tenho mais de 80
gravações, mas o Kizumba-Mass é meu
primeiro e único disco, exceto por algumas participações coletivas as quais não
curto. Gravei 21 músicas, das quais 15 foram para o CD, cuja ideia foi criar um
móbile cujas peças seriam distintas entre si. O disco saiu pela gravadora Atração
e tem as participações do Ednardo, Daniel Taubkin e Anastácia. A exposição do
trabalho gratuitamente na internet é bacana e muito importante, mas é preciso
resolver o problema da remuneração do compositor, que já era difícil pelos
meios antigos.
[2012]
[Entrevista com Graco Braz Peixoto (Brasil, 1955), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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