FM Como a música entra em tua vida?
EG Meu
nome foi escolhido porque meu pai ouviu anunciar uma cantora na rádio, e não
devia ser brasileira. Na minha casa música não existia, e o clima Polícia
Federal era bem pesado, pai e mãe. No entanto eu pedi aos 9 anos um som de
presente, o primeiro compacto que comprei foi Crosby, Stills, Nash and Young (I
can see clearly now) e Billy Paul — Me
and Mrs. Jones
Aos dez anos eu
cantava na Igreja Católica, mas uma madre insistia que minha alegria era over.
E eu abandonei os dois. Sinto que me tornei uma pessoa com grande dificuldade
de me expressar, por isso procurei a música, ela é um canal não tão racional,
pra dentro de mim mesma.
Rapidamente me vi em
Fortaleza fazendo backings para o
Tazo Costa no Teatro da Encetur. Depois comecei minha carreira-solo e fui
estudar com Paulo Fortes, cinco anos de canto lírico. Cantei com o Tim Maia,
Cassiano e Jorge Benjor.
FM Desde quando começaste a escrever sempre esteve
presente essa atenção a um “estado de entrega”? Suponho que isto queira dizer
que tens uma disposição para o mergulho em grandes águas, o que nos leva
inclusive à improvisação. Já falaremos da música, mas comecemos pelas fontes
literárias: tuas leituras.
EG Estado
de entrega é uma necessidade, é vital porque é algo que fica ruminando, então
eu tenho que ir lá ver o que é, e vejo escrevendo.
Eu acho que
sempre precisei escrever. E ler. Aos treze anos eu ganhei uma leitura que, não
sabia por que, me marcou para sempre: os contos de Voltaire, em especial Candide. Lembro de uma vez, aos dezoito
anos, ter causado certa fúria em minha mãe por ter chegado com 20 livros de uma
só vez em casa, dentre eles muitos da coleção Civilização Brasileira. Li muito
sobre temas sociais e os filósofos — cursei primeiro Serviço social, depois
Ciências Sociais na UFRJ, não terminei. Então aos dezoito já havia lido
Descartes, Morus, Platão… Ao mesmo tempo, ou um pouco antes, eu lia todos os
bolsilivros de Lou Carrigan com sua agente Brigitte Monfort. Li Os 7 Minutos, Irving Wallace, e comprei
todos os autores citados. Leitura é uma curiosidade, e estou sempre
contrabalançando a literatura. Sou apaixonada por romance histórico. Agora
estou na fase Guerra de Fogo e Gelo, leitura adolescente, que me faz dormir e
sair da minha realidade. Que não chega nem perto de meu livro quase predileto,
Terra Nostra, de Carlos Fuentes. Em matéria de fantasia… é sem comparação. Como
vê, me interessa estar com a cabeça em grandes ondas imaginárias. Preciso disso
porque estou gravando, durante o dia, o áudio do livro do Roberto Campos,
Lanterna na Popa.
FM Conversávamos em outro momento sobre tua ideia
de introduzir uma linguagem do jazz em algumas canções. Considerando a íntima
relação entre jazz e surrealismo, eu sempre observo a criação artística no
Brasil um pouco refém de uma racionalidade excessiva que contrasta com outro
excesso, o de sua potencialidade mágica. É como um tipo com dotes espíritas
nascido em uma opressora família católica. Essa relação acaba por criar um
trauma. Então por vezes eu vejo a tradição da poesia e da canção popular no
Brasil como devorada por esse trauma que lhe afastou do saudável convívio com o
surrealismo e o jazz. Observe que falo em canção popular, o que exclui a música
instrumental, pois esta é dotada de um sentido de liberdade magnífico que vem
lá de um Pixinguinha, passa pelos chorões, a gafieira, essa figura magistral
que foi Radamés Gnattali, e mestres como Paulo Moura, Egberto Gismonti e essa
impressionante escola natural de multiplicações incansáveis de vertentes que é
Hermeto Pascoal. Já a canção popular atendeu a dois caprichos, o da
conveniência de mercado e o esvaziamento de discurso por limitação de linguagem
expressiva. Quando me falas em teu projeto de aproximação do jazz ele me soa
como um canto de libertação. Comenta um pouco tua impressão sobre o que
menciono aqui, e me fala de tuas ideias jazzísticas.
EG Bem, a
música pop tem regras, a arte não tem regras. Fez-se muita música para Wall
Street, que é a teoria do consumo rápido, não da surpresa. Bem objetivo. Tudo o
que não quero fazer. E acho que esse empobrecimento da linguagem tem a ver com
setorizar. Você foi perfeito na sua colocação. Eu estou buscando sempre a mim
mesma, através da escrita e da música. Cantar é descobrir meu retrato em
mutação… Adotei um processo interessante, gravar à capela antes de gravar com
os músicos. Depois ouvir e ter a mim mesma como referência, quando a música é
conhecida. Isto me impede de ter outra cantora como parâmetro pra a canção.
A música pode ser “cinematográfica”.
A música tem que ter o cenário. Jazz talvez represente apenas essa liberdade.
Eu estou até mesmo pensando em simplificar as harmonias, usar bastante
ostinatos, tornar as bases simples para me sentir bem à vontade. Eu acho que
isso fica mais perto dos ouvidos populares, e fica mais perto de mim, que tenho
a informação do rock, na veia.
FM O Brasil é aparentemente um país anti-sistêmico.
Há inúmeros ensaios sobre o que se chama de carnavalização de nossa cultura. No
entanto, essa leitura é fruto de uma estratégia de poder, dentro do espírito
mais primário do conceito de “pão & circo”. Quando John Lennon foi
assassinado a mídia projetou uma overdose mítica, já de todo desnecessária, por
sua importância inquestionável. O brasileiro Almir Chediak foi estupidamente
assassinado por um sequestrador incompetente. A mídia no Brasil jamais
conseguiu entender a grandeza de sua importância para a música brasileira. Sua
série de songbooks tem uma dupla importância que se pode dizer épica: a
histórica, a recuperação de patrimônio, o ensinamento do amor pelo que é nosso,
no caso dos compositores, ao lado da lição que dá aos cantores, de que fiquem
atentos ao veio riquíssimo de nosso cancioneiro, inclusive variando repertório
e concepção de arranjo. Sempre buscamos equivalências em casa para o que há de
mais patético no mundo e nunca nos orgulhamos do que temos de mais relevante.
Fala um pouquinho disso tudo.
EG Tenho duas lembranças
que ilustram isso: uma, um texto de Antônio Bezerra de Menezes, que quando
vice-cônsul em Nova Orleans, se via obrigado a legalizar faturas consulares de
milhares de dólares em casacos de peles e automóveis usados, como forma de
dissipar um precioso saldo pelo abastecimento da máquina de guerra americana
com nossos minerais, essenciais: urânio, areias monazíticas, manganês etc.
Essa noção de valor a
que você se refere parece cópia da estátua da liberdade na Barra da Tijuca.
Nós nos acostumamos
com a humilhação, por sermos colonos ou sermos escravos.
A postura de não nos
valorizar ainda não mudou. Eu me lembro também de certa vez em Nova York um
amigo me chamar a atenção porque eu dizia em demasia “I’m sorry”. Então passei
a observar que somos um enorme “I’m sorry”. Até bem pouco tempo, e acho que não
mudou demais, observa: se uma pessoa pobre, ou negra, enfim, levasse um
esbarrão de outra pessoa branca, ou rica… Era o pobre e negro quem pedia, ou
pede, desculpas. E se esquecermos esta questão… às vezes ando de bicicleta pela
calçada e se alguém me percebe atrás de si, se afasta e ainda me pede
desculpas!! É uma postura que sempre tivemos, não pensamos como independentes.
Inclusive deve ser por isso que não se produzem tantos filmes sobre a nossa
história, não se diz nas escolas o quanto a música brasileira elevou o Brasil.
Tem uma coisa mudando, mas tem uma filosofia perigosa também, no meio da atual
inclusão: a nivelação por baixo. É talvez a ideologia de parte da classe
dominante que se lançou na esquerda, e que achava operário “pobre coitado”. Eu
acho que isto diminui a qualidade do homem, do cidadão. É a filosofia da Rede
Globo, atualmente, e de quase todas as emissoras, a de que o povão, agora
consumidor, não “alcança” a qualidade intelectual. Eu acho que o governo também
faz isso em muitos programas e procedimentos, visto a escola pública que pouco
reprova, se reprova.
O que nós temos de
melhor é por outro lado a espontaneidade que brota apesar dos comandos, apesar
das ditaduras e das correntes, sempre aconteceu. Com um sorriso de desculpas às
vezes, com força outras…
O funk tem força, é
espontâneo… Mas é uma manifestação perigosa porque ela acorrenta os valores,
que são o retrato de um país cuja elite não valoriza a cultura, a elite que
trocou nosso urânio por casacos de pele! Cultura do eu, do meu… Cultura em sua
plenitude quer dizer: “um homem educado é a suprema obra de arte”. Não sei de
quem esta frase.
FM Vamos conversar sobre os discos gravados até aqui.
O que marca a tua voz? O que ela deseja de ti?
EG O
primeiro foi Comer, pela Niterói
Discos, que concorreu ao Prêmio Sharp, foi mal compreendido e também mal
trabalhado, porque o CD era feito, mas não se acompanhava todo um caminho
posterior. Esse disco tem uma sofisticação, nunca economizamos nos acordes. Eu
ouvia muito hip hop e Anita Baker, sempre a mistura. Aliás, comecei a compor
porque o selo não queria pagar direitos autorais, Arhur Maia e Altay Vesolo me
entregaram músicas para eu colocar a letra. Um processo que não faço mais. O
segundo foi bacana, Elaine Guedes,
independente. O terceiro foi ao vivo, gostei muito, tem uma música inédita do
Lenine.
Tudo o que fiz foi um
processo. Sinto que estou encontrando unidade agora, estou trabalhando mais
também. Durante um tempo fiquei apegada demais à família, não zelei o tanto que
a carreira exigia.
FM Tens um bom sentido
estético de direção de teus projetos. Escrever as letras para outros parceiros,
considerando que serás, em grande parte, a cantora das canções, pode em algum
caso gerar uma frustração ante o surgimento de uma melodia que não era
exatamente a que esperavas para compor o ambiente da letra. Isto costuma
acontecer? Sentes falta do domínio de algum instrumento que pudesses tocar para
te ajudar na composição?
EG Já acontece demais, até que desisti de fazer música esperando cantá-la.
Agora eu canto se achar que tem a ver com o projeto do momento. Cantar minhas
músicas nesse atual projeto Bluesy, vai ser fogo! São canções de Cartola e
Thelonious Monk! O Moacyr Luz fez uma música comigo, claro que eu mandei um
monte de canções pra tentar seduzi-lo, mas o sedutor é ele, ele sabe o que a
música pede e tem seu jeito pessoal, ficou linda. Mas essa cabe, é difícil
dizer que cabe, porque estamos falando de canções geniais. O Aleh Ferreira está
com outra letra, e depois de ver meu encanto por Nelson Cavaquinho, jurou que
procuraria uma inspiração nele. Assim vamos caminhando.
Falta do domínio de um
instrumento? O tempo todo, eu me sinto capenga por isto, quase com uma perna
só! Falta de cultura minha. Quando comecei a cantar tinha muita namorada de
músico cantando. O Ed Motta falou que o Brasil ainda é assim, até me aborreci,
mas é o resultado de nossa cultura. Isto está mudando. Agora música é matéria
obrigatória nas escolas, e música é mais que cantar sem ter uma noção imensa do
que isto significa. E tocar um instrumento tem que fazer parte de aprender a
cantar. Eu só arranho.
FM O mercado da música
hoje me parece mais interessado na contra-imagem do que na imagem em si.
Observo isto porque em nossas conversas dizias que a Adele teria que emagrecer
para seguir vendendo discos. Suicidas em potencial como Amy Winehouse ou gordas
adoráveis como a própria Adele contestam um pouco a tua assertiva. O mercado já
converteu a moral em algo repleto de glamour. Mas a essência estava no glamour
e nunca na moral. Agora o escândalo volta a ter certo charme.
EG Eu adoro toda quebra de conceitos! É o mercado que quer que Adele
emagreça, eu não, acho-a linda! Eu adoro ver o sucesso Antony & the
Johnsons, Bjork é sensacional, eu não tô nem aí pra estética, mas eu me sinto
cobrada com relação à imagem.
O escândalo está de
volta porque a mídia não conseguiu produzir nada avassalador ultimamente. E nem
mesmo consegue pegar a ideia da quebra de paradigma pra produzir revolução! A
essência está sempre na necessidade, não na ideia de sucesso.
FM Agora mesmo estás em processo de preparação de
repertório e arranjos de um novo show, o que certamente acabará remetendo à
gravação de um disco. O que já podes revelar do que andas planejando?
EG Apenas
que abortei temporariamente a ideia de gravar as canções que compus com tanta
gente pelo mundo afora, pela internet. Ficou sem unidade. Então fui cantar na
Lapa com músicos estrangeiros, e me dediquei a um repertório que nunca tinha
esperado cantar. Clássicos. Mas eu quero só é achar o meu jeito de
interpretá-los. Dá o maior trabalho, não me apoiar na interpretação dessas
divas como Billie Holliday, por exemplo.
Eu só quero ouvir a
minha voz quando pensar numa dessas músicas que escolho.
FM Publicaste um livro, O amor nu, e agora tens um novo título em fase de edição. Como se
encontram essas distintas formas de expressão?
EG Dentro da minha casa,
onde eu produzo, é aqui que me encontro, sou essas coisas e pronto. Alguns dos
poemas de O Amor Nu viraram música,
tem links na Internet. Algumas eu não
gravei. O livro novo é mais ousado e escrito a quatro mãos, Poemas em Cortes
Profundos, com João Ayres. E ganhei um presente imenso da vida: um prefácio do
Ivan Lins, escrito magistralmente.
Encontro-me na emoção
das coisas que faço. Revelo-me nelas, inclusive para mim mesma.
FM Esquecemos algo?
EG Essa foi a pergunta mais difícil.
[2012]
[Entrevista com Elaine Guedes (Brasil, 1968), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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