segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ROBERTO PIVA | O banquete do poeta


FM Durante os anos de 1959 a 1961, você participou de um curso sobre a Divina Comédia, curso este ministrado por Edoardo Bizzarri, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Dante teria sido a porta de entrada para a sua poesia?

RP Eu não tinha nenhum interesse em ser poeta. Eu queria ser gangster. Então eu andava pelas ruas de São Paulo, armado de revólver, com capa, imitando os filmes de gangster americanos, Humphrey Bogart etc. O problema é que eu não consegui ser gangster. Então acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar ao gangsterismo. Este curso sobre a Divina Comédia foi dado pelo então adido cultural da Itália no Brasil, e ali comentamos e discutimos os três livros de Dante (Inferno, Purgatório e Paraíso), um ano para cada livro. Eu acompanhei os três anos. O que aconteceu é que Dante, como todo verdadeiro poeta, era um nômade. Foi expulso da cidadezinha dele, entrou em choque com todos os poderes constituídos de sua cidade, com o tipo de governo que havia lá, e passou a vida como nômade, cada hora na corte de um nobre daqueles que lhe dava guarida. Eu também me sentia muito nômade, e havia uma grande identificação minha com todos os personagens de Dante. Eu talvez não seja nada mais do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em completa desordem.

FM Em entrevista que fiz ao Claudio Willer, ele me falou de certas leituras de Heidegger que vocês faziam na casa do Vicente Ferreira da Silva.

RP O Vicente foi o único filósofo original que teve o Brasil. Era um cara que levava, não literariamente, não vegetarianamente, a proposição do Oswald de Andrade, de antropofagia. Para ele, antropofagia era antropofagia mesmo. Não era essa coisa literária, pasteurizada, que esses professores de literatura estão tentando fazer. Para ele, era devorar o outro, era comer o outro, comer, matar e comer. Ele achava que isto era o fundamental, porque ele era um filósofo dionisíaco, um filósofo do delírio. Como as Bacantes, tem que chegar lá e arrancar, matar os Penteus e devorar. Tem que ser devorado, que ser estuprado. Vicente lia ao pé da letra a antropofagia, e era um amigo íntimo do Oswald de Andrade. Daí que foram leituras e discussões de Heidegger e outros filósofos, outros autores, envolvendo muita gente, porque a casa do Vicente era um espaço cosmopolita, onde caras do mundo inteiro frequentavam, desde o Guimarães Rosa, passando por físicos italianos, poetas franceses, críticos americanos etc. Daí que eu acho que 99,9% dos poetas brasileiros são altamente provincianos. Provavelmente o único poeta brasileiro não provinciano foi o Murilo Mendes, dotado de uma visão internacional, geral, cosmopolita. Por isto que a minha grande influência poética no Brasil é o Murilo Mendes, e isto em todos os sentidos, porque eu vinha de uma escola que era a mesma do Vicente Ferreira da Silva, e a minha própria formação, sempre em contato com pessoas de várias nacionalidades, eu saí fora da tribo, ao mesmo tempo conhecendo profundamente essa tribo. Então esse provincianismo de escolinha, de igrejinhas, de tertúlias caretas de literatura, essa coisa de grupo, do tipo o cara vai no jornal e só elogia os caras do grupo dele, isto tudo é uma coisa medíocre, uma coisa provinciana que existe entre 99,9% dos poetas brasileiros. E na casa do Vicente não tinha isto. Lá se discutia Heidegger, se discutia Fernando Pessoa. Conheci lá, por exemplo, o Eudoro de Sousa, famoso intelectual português, exegeta de Fernando Pessoa. Eram momentos de grande participação, nossas leituras de poesia, nossas discussões de Heidegger. Na USP, veja bem, os comunistas da USP, os positivistas, nos olhavam como a molecada. Já o Vicente e a esposa dele, a Dora Ferreira da Silva, nos recebiam da mesma forma como a um Guimarães Rosa. Isto é que era bacana. Enquanto o pessoal da USP estava sempre nos marginalizando. Atualmente são os mesmos caras da USP, que naquela época combateram o meu livro Paranóia (1933), que atualmente, quando me vêem, ficam de olho arregalado e embasbacados, porque acham uma coisa maravilhosa, brilhante, e que descobriram isto vinte anos depois. No entanto, o Vicente, já naquela época – e ele morreu logo em seguida –, mostrava nossos textos para todas essas pessoas, e discutia com a gente com a mesma seriedade com que discutia com um Ernesto Grassi, um Eudoro de Sousa, um Guimarães Rosa. Enfim, todos bebíamos a mesma porção desse caldo filosófico que era a casa do Vicente Ferreira da Silva.

FM Há em sua poesia inúmeras referências musicais – “Miles Davis a 150 quilômetros por hora / caçando minhas visões como um demônio” ou “Paul Desmond com seu sax alto floreando em stacatto meu apartamento” – quase sempre jazzísticas.

RP O ritmo do jazz é inseparável da minha poesia. Aliás, agora que está na moda badalar o Chet Baker, você observa que em 1963 eu já falo dele em um verso meu. Agora ele está na moda, descobriram o cara quando ele está uma ruína, quando está em franca decadência, está democrático, convidando uns babacas do Rio de Janeiro, um pessoal que não sabe o que diz nem o que toca, para tocar com ele. Ele democratizou essa sua energia, e daí perdeu todo o pique. Atualmente ele é um cara totalmente sem aquele pique, aquela genialidade, sem aquela energia de transformação e de invenção que ele tinha, a ponto de influenciar a nossa Bossa Nova. E todo esse balanço da bossa é o balanço da minha poesia. Uma poesia sem música, sem jogo de cintura, é uma poesia rígida, dos comunistas, dos marxistas, uma poesia absolutamente trancada dentro de um túmulo que é o túmulo do leninismo, que já está fedendo. É claro que o rock também me influenciou, mas não teve a mesma importância que o jazz, o cool jazz. Mas há evidentemente alguma influência do rock, uma vez que pessoas como o Jim Morrison, Bob Dylan, Frank Zappa, são excelentes poetas. Então o rock me influenciou também, e até mesmo antes do jazz. Eu fui, por exemplo, um dos caras que em 1957 foi receber o Bill Haley, com um grupo de jovens, lá na Praça do Patriarca, onde ele se hospedou. Fomos fazer uma manifestação de carinho, de afeto. Posteriormente o jazz me influenciou, e logo em seguida a Bossa Nova. Eu fui apaixonado pela Bossa Nova. Então essas três correntes – o rock, a Bossa Nova e principalmente o jazz – são uma constante da influência musical na minha obra.

FM Há a seguinte passagem no livro 20 poemas com brócoli (1981): “não serei vossa sobremesa nesta curta temporada no inferno”. A rebeldia seria o último caminho para a arte no sentido de liquidar com o dopping da sociedade de consumo ou mesmo essa negação já teria sido absorvida pelo status quo, convertendo-se na “própria instituição burguesa do poético” (Luís Costa Lima)?

RP Minha obra tem que ser vista como um plano de fuga desta civilização. Tudo aquilo que eu escrevo, tudo aquilo que eu falo, que eu vivo, todas as trepadas que dou, é porque eu não tenho grana. Por isto eu queria ser gangster, para ter muito dinheiro e evadir desta civilização, morar em uma ilha, saltar fora, morar entre maometanos, eu não sei mais. Trata-se de um plano de fuga desta civilização. Evidente que toda a poesia, que grande parte da poesia brasileira, atualmente está pasteurizada e conchavada com a mídia. Tem jornais brasileiros – e seus suplementos – que são verdadeiros lobbies editoriais. As redações desses jornais tentam pegar poetas em que eles possam oferecer ao público uma visão uniforme da poesia brasileira. Há portanto uma castração em processo, uma castração em massa. Então está na hora dos verdadeiros poetas caírem fora deste circuito, de novo, e ficar naquela eterna de emergir e submergir, porque a pasteurização está aí, cada dia os versinhos estão mais bem comportados, as bordadeiras de poesia estão de volta, tudo isto. Então, eu acredito que a poesia-porrada, a poesia-cancerosa, a poesia-lisérgica, esta jamais será conchavada pelo sistema.

FM Você acredita que a vida se modifique, que o homem se aperfeiçoe?

RP A vida é um monte de ruínas. Não existe evolução, coisa nenhuma. E cada dia mais as pessoas estão voltando praticamente para uma idade da pedra da qual elas nunca saíram. Vale a pena escrever porque três ou quatro pessoas, meia dúzia aqui, outros tantos ali, amigos, um pequeno grupo de pessoas, no meu caso os garotos de periferia, os garotos subproletários, enfim, eles são pessoas que se identificam muito com o tipo de coisa que eu escrevo, porque eles não abolem, eles não tiram da cabeça um princípio básico para entender a minha poesia, a palavra criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a anarquia generalizada – não o anarquismo, mas a Anarquia. A minha poesia nada mais é do que a tentativa de instaurar essa desordem no cotidiano das pessoas.

FM Recordo aqui Pasolini: “talvez a verdadeira tragédia de todo poeta seja a de só atingir o mundo metaforicamente, segundo as regras de uma magia definitivamente limitada na sua apropriação do mundo”.

RP Não tenha dúvida, o poeta é um solitário. Poeta que não é solitário são os poetas oficiais, professores universitários bem situados, casados, direitinho. Tem toda uma mídia atrás disso, visando transformar a poesia em mais uma armadilha que faz movimentar o rebanho. Então essa espécie de cumplicidade dessas pessoas com o sistema visa a venda de obras, ou seja, uma poesia feita em função do ego. A minha poesia não é feita em função do ego, e sim em função do delírio. Eu só acredito no delírio, do qual a poesia é uma das manifestações. Eu estou muito próximo da arte bruta, da arte com loucos, com crianças, dos meus amigos grafiteiros de muros… A poesia é para conduzir a isto. A poesia, diz Lautréamont, deve ser feita por todos. Não para todos, mas por todos, cada um à sua maneira. Agora, querer impingir para o povo brasileiro uma escola, um único capítulo da história da literatura como sendo o capítulo, isto é um absurdo. Existem milhares. A verdade é a variedade. Fora disto é a uniformidade, a coisa totalitária que eles querem impor, tanto os de direita quanto os de esquerda e os de centro, do alto, de baixo, todos querem uma visão uniforme da vida, como se isto fosse possível. Então todos estão aí querendo botar essa máscara, impingir esse túmulo para a sociedade brasileira, para a juventude. Agora, você sabe, tem aquele princípio zen, aquele princípio taoísta: quanto mais você pratica o não-agir mas as coisas correm a seu favor.

FM Encerro lembrando uma declaração recente do Pepe Escobar, publicada na Folha de São Paulo (27/07/85): “No Brasil não existe nem mesmo uma poesia trágica capaz de compensar nosso descarrilhamento histórico. Não temos nem mesmo uma Odisséia que retrate dignamente a agonia de nosso povo. Falta até mesmo o puro e simples tesão na cultura brasileira. Tudo gira em torno de compromissos de clubes, amanteigados por sublirismo. E tudo cai na impenitente banalização.”

RP Pois é, é tudo isto de que acabamos de falar. E tudo gira em torno de uma única palavra: provincianismo. E o cara sendo provinciano ele está perdido. O cara entrar nesse jogo da mídia, ele está perdido, porque isso passa, assim como lembrando uma frase de Brecht: “das cidades só vai sobrar o vento que passa sobre elas”.

[1985]

[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

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