FM Diversas são as maneiras com que muita
gente se aproxima de Sade. Lembro aqui uma declaração de Luis Buñuel, ao dizer
que se sentiu essencialmente atraído pelo pensamento ateu. Em teu caso, o que
primeiro te chama a atenção nesta ainda hoje controversa figura?
ERM O que mais me atrai em Sade é essa “ruptura
com o mundo” que sua literatura opera, na tentativa de despertar e colocar em
jogo virtualidades humanas ainda insuspeitas, valendo-se da imaginação para
aceder aos domínios do impossível. Por isso mesmo, minha leitura da literatura
sadiana sempre privilegia a força imaginativa, fazendo eco a uma conhecida
passagem das 120 journées que afirma: “toda felicidade do
homem está na imaginação”. Assim, busco compreender o pensamento de Sade por
dentro, a partir de seus próprios princípios, acreditando que ele funda um
domínio único de expressão, alheio às exigências de coerência, sejam elas
formais ou conceituais, sejam elas literárias ou filosóficas. Meu lugar de
leitura está comprometido, antes de mais nada, com a fantasia do escritor.
FM Em um breve comentário acerca do
livro Sade contra o Ser Supremo, de Philippe Sollers, observas que
os textos que compõem esta obra, “escritos em tom de manifesto, eles pecam pela
superficialidade com que abordam as diferenças entre as ideias do marquês e
outros pensamentos, o que, por certo, exigiria um rigor do qual o autor julga
poder prescindir”. Eu pediria aqui um detalhamento maior sobre a referida
superficialidade, bem como a tua ideia do significado de Deus para o marquês.
ERM Nesse livro, Sollers tenta dar
continuidade às ideias sadianas, substituindo a refutação de Deus pela recusa
do culto ao Ser Supremo, tão caro aos revolucionários de 1789. Para tanto, ele
coloca o sistema sadiano em oposição aos grandes pensamentos dos séculos XIX e
XX, como os de Marx, Freud e Sartre que, segundo sua visão, ainda seriam
tributários da “religião” laicizada e estatal instaurada depois da Revolução
Francesa. Ora, além de ser um recurso anacrônico, Sollers propõe como
desdobramentos lógicos da ideia de Ser Supremo os complexos conceitos de “Espírito”,
“Sujeito Transcendental”, “Coisa em Si” ou “Inconsciente”, sem atentar às
particularidades que os distinguem entre si. Trata-se de uma atitude
intelectual apressada, equivocada e leviana.
Como proponho no texto “O gozo do ateu”,
acredito que o ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano.
Ninguém nasce livre; o homem, lançado ao mundo como qualquer outro animal, está
“acorrentado à natureza”, sujeitando-se como um “escravo” às suas leis; “hoje
homem, amanhã verme, depois de amanhã mosca” — tal é a condenação que paira
sobre a “infeliz humanidade”. Ciente de que as religiões nascem desse triste
destino, o devasso sadiano prefere admiti-lo sem escapatórias, procurando
superar esse desamparo primordial pela via do erotismo. A volúpia, ensina o
libertino, é o único modo que a natureza oferece para atenuar o sofrimento
humano.
FM Há um largo capítulo de teu livro dedicado
especificamente à libertinagem em sua perspectiva filosófica. Que referências
podemos encontrar, no Brasil, em termos de percepção, prática e desdobramento
dessa linhagem voluptuosa?
ERM Há alguns grandes leitores de Sade no
Brasil, mas estão dispersos. De modo geral, podemos encontrar um traço sadiano
em grande parte dos autores que se vincularam, de uma forma ou outra, ao
pensamento surrealista. Penso em Jamil Almansur Haddad ,
em Claudio Willer ,
em Contador Borges ,
em Jorge Mautner ,
no Zé Celso e no Teatro Oficina, só para citar alguns dos nomes mais
significativos. Entre eles destaca-se a figura singular de Roberto Piva, que
tem um poema genial intitulado “Pornosamba ao Marquês de Sade”.
FM Há também aquele poema intitulado “Homenagem
ao Marquês de Sade” (Piazzas, 1964), em que ele conclui dizendo que Sade
o dilacera e protege “contra o surdo século de quedas abstratas”, o mesmo
século que Apollinaire previra ser dominado por Sade. Onde mais está presente
Sade, confirmando-se tal previsão, em um raro como Roberto Piva e sua obra
tecida em “constante vigília”, ou no acento equívoco de um Serge Bramly em seu
romance O terror na alcova?
ERM São dois opostos. Enquanto o poema de Piva
é iluminado, ampliando a visada do marquês, o romance de Bramly é
definitivamente equivocado. Ao colocar lado a lado o prisioneiro Sade e alguns
dos personagens de La
Philosophie dans le boudoir, Bramly reduz o
sistema sadiano às ocorrências biográficas do autor. Com isso, O terror
na alcova acaba por confundir a condição de vítima com a de libertino;
equívoco inadmissível considerando-se que é justamente a partir da
contraposição entre essas duas figuras — tipos absolutos, irredutíveis um ao
outro, como são Justine e Juliette — que Sade projeta sua ficção de um homem
completamente livre.
Com esses pressupostos em mente, não é de
estranhar que Bramly manifeste outro senso comum, este ainda mais grave, que
insiste em considerar o marquês como precursor da suposta “liberdade sexual”
contemporânea. Tudo se passa como se o liberalismo político tivesse enfim
conquistado tal estágio de garantias individuais que, hoje, qualquer “indivíduo
normal” seria capaz de realizar seus desejos sexuais sem o menor
constrangimento. Tudo se passa como se a insaciável erótica de Sade pudesse ser
substituída pelas prateleiras de uma sex shop, reduzindo toda
fantasia à circulação das mercadorias.
FM Tradutora de Bataille que és, isto me leva
a indagar sobre o excesso ou recusa à abstinência nos dois autores. Como
estabelecer parâmetros entre o êxtase e a emoção sexual considerando o que
defendiam ambos, Sade e Bataille? Em que exatamente se distinguem?
ERM Valendo-me de uma concepção do próprio
Bataille, acredito que se trata aí de escritores cuja literatura se caracteriza
por expressar uma “hipermoral”. Ou seja, trata-se de um pensamento que busca “descobrir
na criação artística aquilo que a realidade recusa”. Ao realizar tal exploração
fora das dimensões éticas ou morais, esses autores abrem mão de todo e qualquer
escrúpulo da tradição humanista para discorrer sobre aquilo que nega os
princípios desse mesmo humanismo. Para tanto, eles se impõem a tarefa de ouvir
a voz dos algozes, considerando seus motivos, e até mesmo a sua falta de
motivos, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse
sentido, podemos advogar mais uma aproximação do que uma distinção entre Sade e
Bataille.
FM Não havia acaso no Surrealismo um tipo de
sublimação do amor, uma libertinagem poética cuja referência a Sade estava
longe de integrá-lo ao viver?
ERM Com certeza. Há em boa parte dos autores
surrealistas uma certa ideia de redenção pelo amor que não se encontra, jamais,
em Sade. Acho
que a leitura surrealista do “divino marquês” concentrava-se, sobretudo, nos
domínios do desejo. O que atraía os membros do grupo em direção ao pensamento
sadiano era justamente a onipotência do desejo, que os escritos do marquês não
só cultivavam como também exaltavam nas dimensões mais imperiosas, radicais e
violentas. Aos olhos dos surrealistas, essa exaltação se revelava ao mesmo tempo
lúcida e irracional, reafirmando a relação entre erotismo e liberdade que
estava no centro das convicções do grupo.
FM Referindo-se às aspirações do Surrealismo,
disse certa vez Robert Desnos que estas haviam sido formuladas essencialmente
por Sade, por ter sido ele primeiramente a entregar “a vida sexual integral
como base para a vida sensível e inteligente”. No posfácio do 2º vol. da Poesia
Completa de Roberto Piva, observas a insensatez de uma escrita “que insiste sem
cessar nas próprias obsessões, reiterando o mote transgressivo para deixar a
descoberto o princípio de subversão que une definitivamente o sexo à poesia”.
Nos dois casos, até que ponto interessa distinguir perdas e ganhos de
linguagem, ocasionados justamente pela obsessão de um projeto maior que
extrapola os domínios da própria linguagem?
ERM Acredito que haja aí uma contradição
produtiva que vale tanto para os escritos dos surrealistas franceses quanto
para a poesia de Piva. Num dos artigos incluídos em La part du feu,
Maurice Blanchot toca nesse ponto ao dizer que, apesar das suas furiosas
invectivas, “o surrealismo aparece principalmente como uma estética e se mostra
primeiramente ocupado com as palavras”.
Por trás dessa aparente inconsequência estaria a
proposta de “liberar” as palavras que os surrealistas teriam realizado em duas
direções. De um lado, na tentativa de aproximar a linguagem e a liberdade
humana até o ponto de transformá-las na mesma coisa: “penetro na palavra, ela
guarda minha marca e é minha realidade impressa; adere à minha não aderência”.
De outro, no reconhecimento de que havia uma espontaneidade própria das
palavras, de tal forma que elas poderiam se liberar por si mesmas,
independentes das coisas que expressam, agindo por conta própria e recusando a
simples transparência.
Ora, persistindo nessa ambiguidade, os
surrealistas foram levados tanto a desprezar a escrita em função da vida quanto
a afirmar sua importância no próprio ato de viver: “escrever é um meio de
experiência autêntica, um esforço mais do que válido para dar ao homem a
consciência do sentido de sua condição”.
FM Em um comentário ao tabelião Gaufridy,
disse Sade: “são minhas desgraças, meu descrédito, minha posição que aumentam
meus erros, e enquanto não for reabilitado, tudo de mal que acontecer nas redondezas
será sempre atribuído à mesma pessoa: o marquês de S.”. Porém até
que ponto Sade teria se beneficiado desse estigma, de tal maneira que sua
reabilitação pudesse vir a ser um obstáculo na influência de sua obra?
ERM Não acredito que tal estigma tenha
resultado em
benefício. Antes , penso que ele serviu para transformar Sade
em uma “marca”. Vale lembrar que não é nada pequeno o aparato pornográfico que
leva seu nome, abrangendo revistas, filmes e, ainda, as edições do gênero que
seus livros acabaram por inspirar. No perverso mundo contemporâneo,
caracterizado por uma vertiginosa circulação de mercadorias, o marquês
transformou-se até mesmo em marca de um champanhe francês,
tornando-se objeto de incansáveis e descabidos apelos de marketing!
Apesar disso, a obra sadiana sobrevive a seu estigma e, se isso acontece, é
porque o pensamento de Sade permanece como um grande enigma.
FM Em um extraordinário estudo sobre Sade,
Alexandrian destaca que “o ideal da heroína sadiana é a puta transcendente”. Já
me dirás se estás de acordo, porém eu principalmente gostaria que comentasses
algo sobre a composição de personagens na obra de Sade, inclusive atentando
para a mescla de características que buscava junto ao próprio ambiente social
de seu tempo. Penso aqui também no mesmo Alexandrian ao dizer que “a história
fornece a Sade um quadro negro que este reveste com brilhantes ornamentos de
estilo”.
ERM Concordo em gênero e número.
Muitos intérpretes da obra sadiana, ofuscados pela imaginação delirante do
marquês, deixam de atentar para o fato de que o romancista propõe-se também
como historiador. Como esquecer a paixão de Sade pela história? Ora, não define
ele como “historiadoras” as quatro prostitutas que relatam as paixões das 120
journées a partir de sua experiência nos bordéis parisienses?
É como se não pudéssemos aceitar que o “inconcebível”
da literatura tivesse sido realmente concebido na história; em que medida isso
ocorre, não sabemos; porém, as histórias dos libertinos setecentistas provam
que não foi Sade quem introduziu a crueldade na libertinagem. Ele é o
primeiro a alertar disso, insistentemente, recorrendo de forma exaustiva a
exemplos históricos. A questão, certamente, não é descartar a prodigiosa
imaginação de Sade; mas, abordar sua obra a partir da história pode trazer
surpresas para os estudiosos que, muitas vezes, ignoram tal
associação. Como ignorar, por exemplo, a relação entre a Sociedade dos
Amigos do Crime e as inúmeras sociedades secretas libertinas que se formam na
França a partir do século XVIII?
FM O epíteto “Divino Marquês” me recorda uma
passagem do Ecce Homo, em que Nietzsche defende que “o divino não
consistiria em chamar a si a punição mas os erros”. Para além da incitação à
liberdade total, estaria Sade empenhado em descarnar a tragédia de uma
sociedade cuja hipocrisia confundia virtude e vício? Neste sentido, seria o
oposto de Restif de La
Bretonne , considerando que este declarava venerar “a Virtude
no Vício”?
ERM Aqui também temos um par de opostos. Nosso
aristocrático e erudito marquês não vê nada que lhe interesse em Restif,
marcando de forma bastante clara sua distância com o tipo de literatura
produzida por este plebeu. Já em 1783, antes mesmo de escrever seu primeiro
romance, encarcerado em Vincennes, Sade envia uma carta à marquesa
encomendando-lhe alguns livros, e adverte: “Sobretudo não compreis nada de
Restif, pelo nome de Deus! É um autor da Pont-Neuf e da Biblioteca azul, de
quem seria estranho que imaginásseis enviar-me qualquer coisa”.
A hostilidade, porém, não é unilateral. E,
se as palavras de Sade podem sugerir apenas uma avaliação estritamente
literária, as críticas de Restif ao autor de Justine mostram
que estão mesmo em jogo diferentes concepções de libertinagem: “Ninguém ficou
mais indignado que eu com as obras do infame Sade”, diz ele no prefácio a l’Anti-Justine.
FM Disse Sade: “O homem nasce para gozar e só
através da libertinagem conhece os mais doces prazeres da vida: só os tolos se
contêm”. Observando a maneira como Octavio Paz foi paulatinamente se
distanciando de Sade, não haveria aí uma maneira de preservar-se a si mesmo,
distanciando poeta e pensador, escapando de toda sorte de exceção ou capricho?
ERM É possível que sim. Passado um quarto de
século desde a publicação de seu primeiro ensaio sobre o marquês, Paz realmente
distancia-se de suas proposições iniciais, voltando um olhar bem menos
benevolente ao que ele chama de “incômodo interlocutor”. Sua visada
concentra-se então em outro princípio do sistema libertino, precisamente aquele
que traduz “um mais além erótico”: a negação universal. Ou, numa só palavra: o
Mal. Ora, ao investigar a exigência de negação que orienta a ficção sadiana, o
escritor mexicano realmente assume mais sua persona de
pensador do que um poeta. Mas, cumpre dizer, ele nunca perde o vigor da
palavra.
FM Esquecemos algo?
ERM Tomara que sim! Dessa forma, deixamos uma
nova conversa no horizonte.
[2006]
[Entrevista com Eliane Robert de Moraes (Brasil, 1951), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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