quinta-feira, 21 de agosto de 2014

NICODEMOS SENA | Um romancista brasileiro



FM Qualquer leitor que busque um romance brasileiro atual através de indicação de imprensa vai se deparar com um imaginário truncado, uma escassez argumentativa e uma linguagem pontual, de cunho jornalístico. Acreditas que haja uma crise do romance?

NS Tens razão: no Brasil, romances mal construídos e vazios de sentido são anunciados como auspiciosas revelações. Autores inexperientes têm quebrado desnecessariamente o gênero. A falta de plano e de pesquisa inicial, por exemplo, tem gerado romances de tessitura débil, inconsistente, obtusa. É preciso muito talento para se aventurar na “escritura automática” dos surrealistas e não fracassar enquanto romancista. Infelizmente, o que é simplesmente confusão e ausência de talento muitas vezes acaba passando como coisa original, imaginosa. Mas a imaginação mesma, aquela que alimenta toda grande arte, ficou de fora desses livros, afetados por um desconexo psicologismo ou pela comezinha descrição do cotidiano. A partir disso, há quem aponte para uma “crise na narrativa”. Crise há muito anunciada, mas o romance continua firme, sempre se renovando e interagindo com outros gêneros literários, pois os seus elementos não são estáticos. A sensação de crise é mais efeito da proliferação dos romances ruins que ultimamente são escritos.

FM Teu romance é a mais absoluta contramão de todo esse esplendor do vazio que se cultua hoje em nosso país. Como te sentes nessa condição?

NS Esse “esplendor do vazio” não é primazia da literatura ou do romance, mas uma tendência que se verifica em todos os setores da vida social; tem muito a ver com a imposição dos valores de uma sociedade que avançou materialmente mas vai retrocedendo à barbárie. Uma sociedade que gera consumidores de produtos descartáveis e não homens que valorizem as perenes coisas do espírito. Uma sociedade da imagem, do espetáculo e do corpo, que valoriza o egoísmo e o sucesso a qualquer custo. Uma sociedade urbana onde a palavra, que antes era sagrada e plena de sentido, chegou ao nível mais alto de estafa e esvaziamento. Vivendo nessa sociedade, não estranha que um romancista adote muitos dos seus valores, que acabam influenciando o seu trabalho. A lógica do “vale tudo” também tem condicionado os romances. Tudo pelo mercado, pelo sucesso, pelo público. E a arte, que nasceu para questionar as aparências, revelar o oculto, esclarecer as consciências e elevar a alma, é convertida em mera diversão que aos homens imbeciliza. Diversão do “público”, que espera sempre coisas palatáveis. Ou diversão do autor, quando este se contenta com a “arte-pela-arte” ou se alheia “na linguagem”, esquecendo-se de que o artista, a arte e a vida precisam andar juntos.
Numa época que prima pela banalização de todas as coisas, eu quis resgatar antigos valores, fazendo uma obra de arte digna desse nome, que não fosse mero artefato de consumo. Levei sete anos sonhando (e trabalhando). Os sete anos mais felizes da minha vida. Num país de relativamente poucos leitores, “A Espera do Nunca Mais”, com as suas 876 páginas, não foi escrito para agradar ao mercado. Tampouco pensei no “leitor” ou no “público”, personagens imaginárias, que “não têm mais tempo para longas leituras”. Ainda sou daqueles que prezam o “estilo” – ou seja, uma forma própria, individual, de dizer as coisas – pois acho que um autor tem que correr riscos: não pode deixar-se escravizar pelos temas, ou pela exigência editorial, na esperança de agradar a quem o lê e obter sucesso de venda; precisa ser honesto naquilo que escreve e transparente consigo mesmo, obedecendo somente à sua própria consciência. “Guerra e Paz”, “Crime e Castigo”, “Ulisses”, “A Montanha Mágica”, “O Processo”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Grande Sertão: Veredas”, por exemplo, teriam sido escritos se seus autores tivessem, no ato de criação, atendido ao gosto do “leitor” ou do “público”?

FM Assim como na poesia brasileira mais recente já diagnosticou a poeta Maria Esther Maciel uma “assepsia da imaginação”, inclusive observando o desinteresse dos poetas brasileiros atuais pelo mítico e o antigo, é possível um diagnóstico aproximado em relação ao romance?

NS Sim. O que acontece com a poesia também ocorre com o romance. Muitos romancistas, como mariposas atraídas pela lâmpada, na ânsia de agradarem ao público, deixam-se seduzir pelos temas mais explosivos, escrevendo textos que pouco diferem do relato jornalístico. Há também um desprezo pelo veio arcaico e primitivo, rotulado de “atrasado”, que também  forma a nossa cultura. No afã de integrar-se ao mundo civilizado, “moderno”, o escritor brasileiro, com poucas exceções, se esquece de que, faça o que fizer, será sempre um brasileiro. E muitos gostariam de não sê-lo! Toda uma tradição literária, forjada na busca de uma identidade nacional – tradição que vem de Santa Rita Durão, Basílio da Gama, Gonçalves Dias, José de Alencar, os modernistas de 1922, Cecília Meireles e Olga Savary – foi de uma hora para outra abandonada. O mito e o primitivo, e com estes a imaginação, entre nós ainda muito presentes e que são justamente os nossos elementos distintivos, foram afastados de cena, mesmo tendo servido de argamassa a pelo menos três obras-primas da nossa ficção – “Iracema”, “Macunaíma” e “Grande Sertão: Veredas”. A vida rural, arcaica, bucólica e tantas vezes àspera, que nos deu uma obra fundamental como “Vidas Secas”, foi desprestigiada. Uma literatura fragmentária, despersonalizada, sem imaginação e sem caráter, que simplesmente mimetiza a vida nas grandes cidades, ocupou o seu lugar e se impôs como literatura nacional.   

FM Ao escrever sobre teu livro, Oscar d’Ambrosio disse que foges “dos estereótipos que cercam a Amazônia”. Que estereótipos são esses?

NS Além de palco das personagens do meu romance, a Amazônia é um lugar de disputa dos grandes interesses econômicos. Apesar de pouco contemplada pelo olhar nacional, o mundo sempre dá provas de que quer saber o que se passa no cenário amazônico. Pois a Amazônia sempre despertou fascínio, principalmente dos EUA e da Europa. Por quê? É que nós temos o que eles não têm mais, que é essa natureza exuberante, essa selva fechada com sua biodiversidade, esses rios de águas cristalinas e seus peixes ornamentais, essa monumentalidade indescritível e sua riqueza mineral incalculável. Isso fascina crianças e adultos nos lugares mais distintos. Todavia, ao mesmo tempo que desperta fascínio, em função do seu mistério, a  selva também gera uma espécie de medo. Então, fala-se muito na Amazônia, mas pouco se conhece sobre ela. As pessoas pouco se arriscam a enfrentar essa região, havendo, em conseqüência, muita ignorância, muito exotismo, com base no qual muita literatura ruim, meramente fantasiosa, foi e continua sendo feita; uma sub-literatura que reproduz acriticamente as lendas e mitos da região, afastando as pessoas de uma compreensão exata das mazelas que aflige o caboclo (em tupi, “homem que vive no mato”). Os problemas da Amazônia são enormes, como a própria região, e complexos; dificilmente um “turista aprendiz” hoje conseguiria captar os mistérios da vida amazônica. O mito, além de compreendido, precisa ser recriado. Se repetirmos as velhas histórias, do modo como os antepassados nos contaram, desgarradas do seu contexto antropológico, social e histórico, permaneceremos sendo vistos pelo Brasil e pelo mundo como elementos folclóricos na humanidade. Com esse ideário escrevi “A Espera do Nunca Mais”.

FM Também a Olga Savary já havia dito que escapas do “regionalismo limitador”. Há casos em que os conceitos de contra-regionalismo são tão limitadores quanto o reverso da moeda. Como te sentes em meio a isto?

NS Nunca foi fácil entender o que se passa debaixo daquelas florestas, pois até mesmo escritores nativos têm cedido ao exotismo. Mas talvez alguém diga que, em literatura, importa a linguagem e não a geografia. Acontece que, na Amazônia – e noutros lugares peculiares, como o sertão nordestino – a paisagem natural gera uma cultura, gera o homem. Para entrar na psique desse homem, para compreender o seu pensamento e a sua alma, é preciso conhecer bem o seu ambiente natural, sem o qual toda uma cultura desapareceria. Graciliano Ramos provou isso em “Vidas Secas”, João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina” e Dalcídio Jurandir em “Marajó”. Um romance ambientado na Amazônia não pode deixar de refletir a simbiose do homem com a natureza, tornando-se, até onde é permitido à obra de arte, um instrumento ético em prol da vida. Não se trata de defender o romance “ecológico” ou a natureza como um santuário intocável; mais do que a natureza física agonizante, importa-me o homem amazônico e a sua cultura, os quais, juntamente com a natureza, parecem estar aí com seus dias contados. Ao afirmar que escapei do “regionalismo limitador”, Olga Savary  me fez um tremendo elogio, mas não me livrou de todas as dificuldades. Pois hoje, mesmo um regionalismo “não limitador” como o de José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Érico Veríssimo e João Guimarães Rosa, teria sérios problemas com a crítica. Vai longe o tempo em que a vida local interessava às metrópoles formadoras de opinião. Hoje, aquele Brasil rural, ou pouco urbanizado, fora do eixo Rio-São Paulo, que irradiava cultura e trazia inspiração, é visto como simples “periferia”. O Brasil “moderno” virou-se de costas para os Brasis “arcaicos” e ajoelhou-se diante dos nossos atuais colonizadores, repetindo-lhe os gestos e as palavras, numa patética e incompreensível algaravia. Mesmo sabendo disso – aliás, porque sabia – escrevi “A Espera do Nunca Mais”.

FM Exceto pelo cultivo da saga, em que acreditas que te aproximes de Érico Veríssimo e João Ubaldo Ribeiro? Por que se reflete tão pouco sobre a história brasileira em nossa literatura?

NS Fiz de “A Espera do Nunca Mais” uma saga unicamente porque me pareceu o modelo narrativo mais adequado ao meu propósito de escrever um romance total da Amazônia, que refletisse a imensurável grandeza, física e humana, da região. A saga não deve ser uma imposição, até porque é um caminho muito longo e difícil, que exige vigor, persistência e concentração, como as maratonas. Só um escritor com projeto definido e ambição literária nela se arrisca. Por isso admiro Érico Veríssimo e João Ubaldo Ribeiro, que se lançaram como dois titãs nessa aventura e não saíram vencidos. Além disso, como Érico e Ubaldo, faço, a partir dos problemas da Amazônia, uma reflexão sobre a história brasileira, sem repetir a velha fórmula do romance “histórico”; ao contrário, em “A Espera do Nunca Mais”, a história oficial é desmontada, mostrando a sua verdadeira face de miragem monstruosa. Socorri-me, nessa operação, do próprio imaginário amazônico, que funde o real e o sonho. Pois só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem, imposta pelo colonizador. Busco o real, sim, mas não o real manifesto, que está em toda parte, mas que sob o domínio do medo se transforma em fantasia e fuga, o que talvez tenha levado Mário Quintana a afirmar que “a imaginação é a memória enlouquecida”. “A Espera do Nunca Mais”, porém, não é um romance politicamente “engajado”, apenas insere o homem individual no drama coletivo de uma região machucada, que pouco a pouco vai agonizando.

FM Do ponto de vista do estilo, buscastes paradigmas ou inspirações para escrever “A Espera do Nunca Mais”?

NS É verdade. Não raro o escritor busca paradigmas no meio físico ou social, ou em obras de outros escritores. Oswald de Andrade, por exemplo, foi influenciado pelo telégrafo e pelo telefone, novidades de sua época. Na grande aventura estilística que foi a “A Espera do Nunca Mais” encontrei inspiração estética na própria geografia amazônica, com seus labirintos de rios, a selva intrincada, os cipoais, a lentidão que a tudo rege. Nessa geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos. Alguém já me disse que meu livro é barroco. Sim, é barroco, como barroca é a região em que se ambienta a história. Barroca, aberta e canibal. O tempo na cultura amazônica é algo bem particular, suave. As horas são medidas pelas luas, pelos dias de canoa ou de barco para chegar a tal lugar. Pela época da piracema, a época da desova. O homem amazônico, o homem dos rios, é fruto daquilo que o cerca. Na Amazônia, “o rio comanda a vida”, como diz o título do célebre livro de Leandro Tocantins. “A Espera do Nunca Mais”, refletindo tudo isso, é um livro líquido, extenso, com grandes remansos; como nas lendas e mitos indígenas, a linearidade da trama é apenas aparente; a história, ou as histórias, vão e voltam, e o narrador não tem pressa em acabar o que está contando.

FM Tens um segundo romance, a ser editado em Portugal, A noite é dos pássaros. Em que se confirma ou altera a poética anunciada no anterior?

NS Esse romance, que sairá em Portugal, terá apenas 140 paginas, e foi escrito em dois anos, o que não deve ser interpretado como uma deliberada facilitação ao leitor, pois também é fruto de árdua pesquisa e foi escrito com a mesma energia e esmero artesanal. Da primeira à última linha, o leitor poderá encontrar vestígios, sincronizados na narrativa, de mais de uma centena de livros, escritos em boa parte no século XVIII, época em que vivem as personagens (índios e reinóis). Parto da história para lançar-me, com firmeza, na estória, na literatura, enfim, na linguagem, como alguém que, com os pés na vida e os olhos no relógio, mas cansado da claridade, mergulha na penumbra dos sonhos. Não o sonho pelo sonho, fuga do real, mera crença. Através das janelas abertas no “A Espera do Nunca Mais”, procuro nesse segundo livro captar a sugestão onírica dos mitos indígenas, despindo-os da roupagem imposta pelo colonizador, libertando o imaginário do medo que o alienou. Como escreveu Vicente Franz Cecim em “Flagrados em delito contra a noite” (1983): “Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor”.

FM Alguns autores brasileiros começam a ser melhor percebidos pelo mercado editorial português do que brasileiro ou o caso de Vicente Franz Cecim é uma exceção?

NS Creio mais na última hipótese. Há mil barreiras impedindo o intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil. A começar pela forte tributação aplicada na entrada e saída de livros de um país para outro, que torna proibitivo o preço final do livro importado, inviabilizando a sua comercialização. Além disso, Portugal se debate numa crise econômica que afeta o movimento editorial lusitano.  Mas o sucesso de crítica e de venda de “Ó Serdespanto”, o mais recente livro do Vicente Franz Cecim, também não foi por acaso. Foi o feliz encontro de um grande escritor brasileiro com um editor português idealista e arrojado, amante da literatura, o jornalista e escritor António Cabrita, da Íman Edições. A excelente recepção do livro de Vicente Cecim em Portugal certamente chamou a atenção de outros editores portugueses para a produção literária brasileira, o que pode resultar em abertura de portas para outros escritores.

[2009]

NOTA

O que me parece mais interessante no diálogo que leremos a seguir é a franqueza com que o entrevistado toca em assuntos que hoje assumiram uma conotação traumatizante a ser evitada: os meandros da construção de uma linguagem e os dilemas existenciais e estéticos de seus pares. E é tão natural a maneira como o romancista Nicodemos Sena (Pará, 1958) aborda esses aspectos que voltamos a nos sentir reconfortados: o autor é gente e não um boneco empalhado oferecido a público em uma feira de variedades. Em linhas gerais a única coisa que se espera de um romancista é que nos conte uma história, qualquer uma. E que nos envolva com sua narrativa. O que parece ser tão simples complica-se diante de um imaginário estagnado, uma presunção que converte em genial qualquer trunco na linguagem, ausência completa de tensão existencial nos personagens etc. Não há gente dentro ou fora do que se tem sido escrito em nome do romance na literatura brasileira que hoje se encontra em evidência. A espera do nunca mais, de Nicodemos Sena, aponta neste sentido, o da recuperação anímica do ser. Se foi bem sucedido, impossível dizer agora. Julgamentos apressados já provocaram toda espécie de infortúnio na mente de um artista. Este é seu livro de estreia e, por mais que o autor seja já um homem maduro, consciente do ofício e suas perspectivas, realidade e ficção se confundem quando menos em possibilitar revezes. A grande delícia me parece ser a verdade com que fala Nicodemos Sena, como se sente à vontade para enfrentar os dilemas existenciais da escritura e conversar ainda mais abertamente sobre as perspectivas atuais do romance. Abraxas

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