FM São palavras tuas: “Minha poesia tem como sentido
a captura do real. Realizar a plenitude da imagem, fundando uma nova realidade
que nasça dos dados mais imediatos do cotidiano e se alce à categoria de mito.”
Esse exagero que define a perspectiva mítica o aproxima tanto da exuberância
barroca quanto do sentido de excesso da mais realidade defendida pelo
Surrealismo. Como surge o poeta Foed Castro Chamma descobrindo-se na mais
completa contramão da tradição lírica de nosso país?
FCC A intenção de fundar uma realidade, paralela, que
nasça dos dados imediatos do cotidiano e se alce à categoria do mito, implica
rebeldia no sentido de individuação, usurpada pelo Logos. O poeta pretende
chegar à consciência de Si. O Maneirismo, que Curtius vê nas Odes de Píndaro,
ao estender-se ao barroco na fulguração emblemática de Teresa de Ávila,
configura o neo-panteismo precursor desse pretenso desvelamento da realidade no
emaranhado da linguagem poética, retomado pelo Surrealismo, e que na minha
iconografia poética manifesta-se na sombra como um duplo de mim mesmo que o
Outro representa. Na trilha de Ludwig Wittgenstein se pode pensar na poesia
entremeada à filosofia da linguagem na busca de entendimento, em cujo aparato e
perplexidades me descubro poeta. O campo da poesia, anterior a Homero, não era
o dos fatos e do relato, era antes cosmológico, no sentido de captura da
Unidade, da qual a consciência é o eixo de indagação sobre o ser e o mundo. Uma
questão ontológica, portanto. Homero antecipa-se ao Logos e à História ao
resgatar a lenda de Menelau e o rapto de Helena, o qual motivara a guerra de Troia
e a fundação do Império Romano, dando início assim à dinastia dos Césares. A
vocação ática de domínio da Razão exclui a Essência em função de uma geometria
que não comporta o mito, antes se volta para a produção como pressuposto de um
relato que culmina, em Homero, na teologia das rapsódias imortais precursora da
História. Nesta medida o parâmetro da linguagem poética continua ao lado da
notícia o da manipulação do simbólico. Ao colocar-se como afirmação a linguagem
é uma ponte entre o ser e pensar. Tal inquietação abarca a angústia
existencial, cujo fim se torna religião na Antiguidade (taoísmo) ou instrumento
de meditação (Nibana ou Nonada) ponto de partida da visão dramática de
contendas e mesmo da lenda hodierna de Diadorim. Um censo de rebeldia coloca o
poeta em confronto com o Logos. O território do mito, o real, é sacralizado na
Época Arcaica, de modo a fundar uma realidade epifânica, em cujo domínio a
linguagem poética se exerce, elucidando com a matemática do simbólico o engenho
que se ergue da negação e transforma-se em afirmação do ser. Vejo no
Surrealismo a retomada da Arché. A
imagem fundada no real constrói na mente a realidade. Possui anotações críticas
tanto em Teresa de Ávila como em Cervantes e o delírio de D. Quixote, que
Michel Foucault coloca em As palavras e
as coisas ao lado de Velásquez, no espelho, interpretando assim a retórica
da Semelhança que colide com uma das faces do antropocentrismo renascentista
abordado por Lope de Vega, Góngora e, mais recentemente, por André Breton.
FM Uma outra declaração tua, acerca da gênese de Pedra da transmutação (1984), destaca
que, durante a escritura deste livro, foste “perseguido por toda sorte de
alucinações”. Tais alucinações se davam à revelia ou eram fruto daquele sentido
radical de um abandono ao maravilhoso que Breton defendia como sendo “a única
fonte de comunicação eterna entre os homens”?
FCC O “abandono ao maravilhoso”, sendo “a única fonte
de comunicação eterna” é um ato de transgressão à imposição do Logos, a cujo
código o poeta ao rebelar-se se volta, instaurando um discurso espiralado, que
Platão antevira como curva do tempo e as teorias da relatividade o comprovam,
negando a linearidade da física newtoniana em relação à circularidade do eterno
retorno.
FM Uma reação crítica aos primeiros livros mencionava
uma “vocação para o satânico” (Mário Peixoto, 1953), um “espírito barroco e
místico” (Walmir Ayala, 1959), “poesia de iniciado” (José Roberto Teixeira
Leite, 1959), e Hélio Pólvora chega a falar de tua busca de uma onisciência.
Hoje aceitarias alguma definição de tua poética? Qual?
FCC As definições em epígrafe são a meu ver de uma
coerência definitiva em relação à minha arte poética. Não vacilo em confirmar o
sentido de tentativa de um heliocentrismo de Copérnico a determinar uma
centelha do pensamento a abarcar o universo ao meu redor. A extensão do
pensamento ao passar pelo “espírito barroco e místico” em função de um
satanismo baudelairiano configura uma iniciação que culmina naquilo que Hélio
Pólvora antevê como uma “onisciência”.
FM Talvez se possa entender a criação artística como
uma forja dos metais do espírito. No entanto acaba revelando-se alheia à busca,
ou seja, a concretude do objeto de arte (poema, escultura, canção) será sempre
surpreendente, por mais que o artista se declare senhor completo do ofício.
Haveria algum caso de ruptura entre o buscado e o encontrado em teus poemas?
Poderias nos falar um pouco a respeito disso?
FCC A entrega ao poema envolve uma mediação do Todo
Uno que culmina na concretude do objeto de arte, na “forja dos metais do
espírito”, de maneira a não se poder declarar o poeta senhor completo do
ofício, na medida em que entre o sujeito e a linguagem paira a relação de
espírito e matéria, que os metalúrgicos arcádicos cultuavam entremeando à forja
dos metais o casamento dos opostos. Que sei sobre o que advirá dessa relação
entre linguagem e Essência? Somos oficiantes e servos da representação. O
domínio sobre Cronos pertence ao fogo do Espírito que delineia a fulguração do
objeto de arte, a Beleza, filha de Hélios.
FM De alguma maneira te consideras vinculado à
Geração de 45?
FCC A Geração posterior a 30 se volta para uma
linguagem alegórica vinculada à Forma numa reação ao iconoclástico, ao
antropofágico, de maneira a se pensar num suporte parnasiano que culminará no
Acontecimento do Soneto, voltado para uma tradição que Jorge de Lima quase
chega a esgotar e que encontrará na Geração 56 continuidade, a cuja constelação
julgo pertencer. As Gerações se sucedem atendendo a uma dialética que evolui em
direção ao ponto de partida da indagação sobre o Ser. Houve época em que se
pensou em Virgílio superior a Homero. Não se cogitava então de que a grandeza
de Homero, ao lado do mosaísmo, está na transposição da teologia astronômica da
Suméria para o antropocentrismo teológico que antecede a Renascença.
FM O silogismo aristotélico e o orfismo pitagórico
são zonas de conflito na tradição lírica brasileira, ou acaso esta se encontra
inteiramente dominada por um esvaziamento ético, uma anulação de princípios
ontológicos, de tal forma que mergulhamos em um continuísmo formal que despreza
as raízes ferozes da existência humana?
FCC O conceito de identidade em Aristóteles, apesar da
grandeza da cultura greco-romana, salva em Bizâncio, colide no Renascimento com
o Romantismo, ressurgindo todavia sob o critério órfico da Verdade na tessitura
ética de restauração do Nume, dessacralizado na tradição lírica brasileira em
função de uma metodologia que levou Byron, em contrapartida, a exclamar no
início do século XVIII: “down Aristóteles.” O critério ético da linguagem
corresponde a meu ver a uma geometria intrínseca do significado, da qual o
sujeito não pode prescindir, na medida em que a prática do saber, vinculada ao
uso estético da razão, é antecedida de uma ordem gramatical de domínio dos
Estóicos, que a lírica brasileira parece ignorar, voltada para o epocal, o
historial, na acepção de Martin Heidegger, reincidindo assim sobre um equívoco
mergulhado como dizes no “continuísmo formal que despreza” a quididade, “as
raízes ferozes da existência humana.”
FM Qual teria sido a influência do Concretismo em tal
processo?
FCC A meu ver o Concretismo se voltou para o processo
semiológico de “desconstrução” do vocábulo, incorrendo em uma prática de
ruptura com a retórica tradicional de maneira a provocar uma alta tensão, alta
voltagem na construção do poema, de fundamental importância para o poeta novo.
FM O reconhecimento de tua poesia, a exemplo de um
outro poeta, José Santiago Naud (1930), por exemplo, de que maneira teria sido
comprometido por essa situação?
FCC Na verdade existe um pressuposto hierárquico de
valores que aparenta ignorar qualidades em função de uma imediatidade imposta
pela cultura. Penso percorrer um caminho de descondicionamento do que pretende
se impor em detrimento de uma prática a
priori do saber. Um processo, portanto, de invenção e de contracultura.
FM Quero retornar a teu Pedra da transmutação, por uma simples razão: a estrita relação que
guarda com outro livro, Filosofia da arte
(1999). Não me refiro a vinculação temática, mas a um aspecto curioso: a
disposição formal entre verso e prosa. Rigorosamente o que se apresenta em
verso em Pedra da transmutação
poderia ser um capítulo, em prosa, de Filosofia
da arte, sem perda de comunicação alguma. Como defines essa forja do verso
e da prosa?
FCC Houve a partir dos 2.000 primeiros versos de Pedra da transmutação uma inclinação
natural para o acompanhamento crítico do poema, passando por questionamentos do
realismo hegeliano e a tentativa de elucidar o alucinatório em função de uma
arte que emergia do cotidiano concentrada na geometria da sombra como um duplo,
cuja física encontraria na linguagem o Ícone a dar sustentação emblemática a
uma figura que rompia o espelho da semelhança e se impunha junto a mim
projetado no outro como linguagem criptográfica. Filosofia da arte é uma biografia do poema que reflete o incêndio
na floresta. O texto em prosa percorre a floresta do imaginário à procura da
clareira. Porfírio diz, em As sensações,
que a imagem está na mente e se transforma em realidade.
FM Me parece que o homem não existe aquém ou além do
mistério. Magritte tem uma frase brilhante neste sentido: “o mistério é a
necessidade absoluta para que a existência seja possível”. No Brasil, a ideia
de modernidade coincidiu com uma certa erradicação do mistério, e praticamente
se impôs um determinismo que ainda hoje reflete-se no esvaziamento de confronto
entre poesia e realidade.
FCC Penso em um axioma filosófico: A liberdade é a
necessidade. A liberdade é o mistério que a poesia percorre como necessidade de
elucidação do ser na negação. No Brasil, o futurismo em voga na Itália em 22
exerceu forte influência na Semana da Arte Moderna sob o critério de
desenvolvimento Industrial, apesar de Gabriele D’Annunzio e da tradição
Simbolista italiana, da influência sobre Borges e em toda a América latina do
que seria a extensão de uma conquista individual renascentista tardia. Por
outro lado, tal realismo esbarra num pressuposto de escola que sucede ao naturalismo
e remete o intelectual brasileiro à herança cartesiana a qual, por sua vez,
acolhe Victor Hugo, Gerard de Nerval, Baudelaire, Laforgue, Rimbaud, ao lado de
um Rilke, um Rodin, enquanto se permanece preso a pruridos epigonais de “desconstrução”
da sintaxe. O cartesianismo exerce desde o século XVII um esvaziamento
castrador do Antropocentrismo responsável pelo Renascimento italiano, iniciado
com Dante no século XIII, e que deu a Roma o traçado moderno de Miguel Ângelo,
e que levaria Descartes a conceber o Discurso
do Método em relação ao antigo emaranhado de vielas de Paris. Nossa
modernidade está presa a uma herança cultural contrária ao projeto literário de
Allan Poe que deu origem ao Simbolismo e se impõe desde o realismo sucessor do
naturalismo no século XVIII em detrimento do surreal.
[2002]
[Foed
Castro Chama (1927- 2010). Paranaense de nascimento, trata-se um desses
intrigantes poetas brasileiros que a crítica jamais deu pela grandeza de sua
obra e de seu pensamento. Deixou livros como Iniciação
as Sonho (1959), Pedra
da Transmutação (1984) e Filosofia da Arte (2000). Alguns de seus estudos
filosóficos são encontrados na Agulha
Revista de Cultura: www.jornaldepoesia.jor.br/agindicegeral[F].htm. Entrevista publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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