quinta-feira, 7 de agosto de 2014

JOSÉ PAULO PAES | Uma breve conversa


FM Inicio esta nossa conversa referindo-me a William Burroughs ao nos lembrar que “um escritor precisa ter a capacidade de sobreviver ao desempenho irregular, o que seria um desastre em outra profissão”. Considera-se um bom crítico de seus próprios trabalhos?

JPP Se me considerasse, já não seria um crítico: a verdadeira crítica começa em casa. Embora eu não me tenha por bom juiz do meu próprio trabalho, o tempo e a experiência me ensinaram pelo menos a desconfiar da natural cegueira do entusiasmo. Antes de publicar o que quer que seja, deixo o que escrevi passar por um período mínimo de esfriamento, ao fim do qual releio desentusiasmadamente o escrito para, raras vezes, deixá-lo como está, ou corrigir-lhe as imperfeições, se possível, ou então, em última instância, jogá-lo fora. A sabedoria literária, para mim, está em manter um razoável estado de equilíbrio entre a gaveta dos guardados e a lata de lixo. À medida que se vive, vai-se manifestando uma tendência à diminuição dos conteúdos de uma e de outra. Não porque nos tornemos mais talentosos ou menos críticos, mas porque acabamos por nos convencer de que só se pode fazer o que se pode fazer. Este lugar-comum é útil no cartografar a terra de ninguém (ou de nós todos) que separa o charco da impotência ressentida do enganoso borbulhar do gênio.

FM Ao reunir tua poesia em um só volume, Um por todos (1986), que possível balanço crítico terias feito em relação aos 36 anos de atividade poética que ligam O aluno (1947) a Calendário perplexo (1983)? Por que dispuseste os livros em ordem cronológica inversa à de sua publicação?

JPP Esse possível balanço se resume numa frase: a conquista de voz própria. Voz de pequeno volume, insegura talvez, porém minha. Quando dei o título de O aluno ao meu primeiro livrinho de poesia foi porque tinha consciência do que nele havia de epigonal. Lembro-me de uma frase da carta com que Drummond lhe acusou o recebimento: “Você se procura através dos outros quando é dentro de você mesmo que deve se encontrar”. Essa procura de mim mesmo se estende de O aluno a Calendário perplexo e continua até hoje: ser é procurar-se. E não creio que ela vá nunca terminar: todo livro é o penúltimo. Daí eu ter preferido a ordem cronológica inversa em Um por todos: a ordem cronológica direta só convém ao autor defunto. O passado interessa pelo que pode iluminar do presente e o meu presente está em aberto, pressupõe o futuro. Tanto assim que já tenho pronto um novo livro de poemas, A poesia está morta mas eu juro que não fui eu, outro em andamento, ainda sem título definitivo (talvez Prosas ou Com a data vencida), além de duas coletâneas de ensaios em fase final de organização: Sob o signo de Judas, reflexão em torno da tradução e seus problemas, e Ficção, ficções, estudos de teoria e prática funcional. Isso sem falar nas traduções: concluo atualmente a versão, do grego antigo, de uma seleção de epigramas de Paladas de Alexandria, o último dos poetas pagãos (século V a.C.), e nas horas vagas vou trabalhando sem pressa numa antologia de poesia erótica, com textos traduzidos do grego antigo e moderno, do latim, do francês, do italiano, do espanhol, do inglês e do alemão.

FM Sente-se perseguido por temas? Há algum, em particular, que ainda não tenha abordado adequadamente?

JPP Eu não diria que me sinto perseguido por temas definidos ou imediatamente definíveis. O que me persegue o tempo todo é uma nébula de poemas em embrião. Uns se precisam e se desenvolvem pouco depois de aflorar a primeira ideia; outros ficam em estado larvar nos desvãos da memória até o dia em que escolhem vir à luz; outros, por fim, abortam ingloriamente antes de chegar a ela. Ao que me lembre, só nas Novas cartas chilenas (1954) e em Calendário perplexo (1983) foi que desenvolvi sistematicamente um tema. Naquelas revi criticamente alguns dos momentos decisivos da nossa história política e social; neste, celebrei epigramaticamente certas datas ou efemérides tradicionais. Nos demais livros, mais que por um tema defendido, fui solicitado por instigações variadas em diferentes momentos e níveis existenciais. Ultimamente têm-me ocorrido motivos de fundo auto-biográfico. Digo “ocorrido” porque não os busquei deliberadamente. Ainda que vivências pessoais subjazam à maioria dos poemas que escrevi, raras vezes eles as tematizam. Agora as coisas começam a mudar. Para e até onde não sei. Ainda.

FM Borges nos diz que “cada escritor cria seus precursores”. Quais você acredita que sejam os seus?

JPP Citei alguns deles num dos poemas de meu próximo livro. O poema se intitula “Acima de qualquer suspeita” e diz: “A poesia está morta / mas juro que não fui eu / eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la / imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto paul éluard oswald de andrade guillaume apollinaire sosígenes costa bertold brecht augusto de campos / não adiantou nada / em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de ferro araraquarense / porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece nunca ter existido / nem eu”.

FM Em Mallarmé: “todo método é uma ficção”. Seus ensaios — aqui eu me refiro aos incluídos em Gregos & baianos (1985) —, podem ser inscritos no curso da ficção? Você considera a crítica uma atividade tão imaginária quanto a ficção e a poesia?

JPP Entendo o ensaísmo e a tradução literários como uma criação de segundo grau. A de primeiro grau é evidentemente a obra que se traduzia ou as obras acerca das quais se escreve. Tanto quanto a tradução, o ensaio de interpretação é um ato hermenêutico de penetração no íntimo da obra alheia e de redicção dela (se cabe o termo). A tradução a rediz num outro idioma, a interpretação crítica numa outra linguagem, numa metalinguagem. O inegável, porém, é que sem imaginação não se consegue penetrar congenialmente a intimidade das obras de imaginação. A congenialidade entre o texto original, sua tradução em outras línguas e suas interpretações críticas alcança fazer destas criações de segundo grau um prolongamento daquele. Já se disse que A divina comédia não é apenas o poema de Dante mas a soma dele com as grandes traduções e as grandes interpretações que suscitou e continua a suscitar. Embora, à diferença da criação literária propriamente dita, o ensaio seja mais obra da razão que da intuição, nele o imaginativo também está presente sob a forma de metáforas críticas. Para citar dois exemplos de Gregos & baianos: recorri ao mito de Narciso para interpretar as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e ao mito de Frankenstein para iluminar criticamente o poema “The tyger”, de William Blake.

FM Não há na história da poesia brasileira uma tradição metafórica (basta ver com que pânico horrendo a maioria de nossos poetas baniu de suas veias o sangue surrealista — o que provavelmente teria a ver também com o sepultamento de uma possível tradição barroca). A que atribuir tal fato? Acaso teria algo a ver com a observação de William Carlos Williams de que a metáfora dissolve “a individualidade das coisas comparadas”? Tal aspecto, por sinal, cairia como uma luva em nossa atormentada obsessão pela realidade (haja visto a praga da chamada poesia social). Enfim, o que você me diria em relação a tudo isto?

JPP Tudo depende do que se entenda por metáfora. Jakobson mostrou que, mesmo naqueles poemas de que está aparentemente ausente, ela comparece sob a forma de figuras de gramática, que não deixam de ser procedimentos metafóricos de transladação e intensificação de sentido. O que você chama de “atormentada obsessão da realidade” da poesia brasileira, eu a vejo antes como um traço positivo: a ela devemos momentos epifânicos como a poesia de Bandeira, de Drummond e de João Cabral. A propósito do metafórico na poesia de William Carlos Williams, não se esqueça que a sua obsessão com a individualidade das coisas da realidade é que dá inusitada força às suas metáforas. No estudo crítico que precede minhas tradução dos Poemas dele, tive ocasião de dizer: “A expressividade de uma metáfora é tanto maior quanto maior for o grau de individuação e dissimilaridade das coisas entre si comparadas”.
Quanto ao “pânico” dos nossos poetas com o “sangue surrealista” e o consequente “sepultamento de uma possível tradição barroca”, seriam uma reação (e como tal positiva) àquele “instintivismo bêbado e contraditório” que Mário de Andrade deplorou na tradição brasileira e àquele perigoso comprazimento na exuberância verbal que, de Rocha Pita a Coelho Neto, produziu tanta má literatura entre nós. Exceções como Gregório de Matos e Guimarães Rosa só servem para confirmar o comum das coisas. Igualmente o confirma o minguado contributo surrealizante de Murilo Mendes, de Jorge de Lima e do João Cabral de Pedra do sono.

FM Sendo Paterson o mais importante livro de William Carlos Williams, qual o motivo, nesta antologia por você organizada para a Companhia das Letras (Poemas, 1987), da inclusão tão somente de um pequeno trecho inicial da referida obra?

JPP Não penso que Paterson seja o livro mais importante de Williams: é, sim, o mais ambicioso. Como se trata de um poema muito comprido, seria preciso dar longos excertos dele para que o leitor pudesse ter uma ideia aproximada do que se trata. Todavia, para fazer isso, eu teria de deixar de lado boa parte dos poemas mais breves. Ora, sacrificar estes, cada um deles uma obra acabada e integral, por farrapos daquele me parecia a pior das opções. Donde eu a ter descartado.

FM Considera suas traduções diretamente do grego uma espécie de palimpsesto?

JPP Sim, na medida em que foram bem sucedidos. A tradução bem sucedida de um poema deve permitir ao leitor entrever, por sob o traduzido, o fantasma do original, assim como por sob a reescrita de um pergaminho se pode recuperar o sulco palimpséstico.

FM No prefácio de sua antologia Poesia moderna da Grécia (1986), você faz referência à existência de uma meta que deveria alcançar com a apresentação desta poesia ao (cada vez mais) eventual leitor brasileiro. Que meta era esta, e em que sentido você a teria atingido?

JPP A minha meta era mostrar que o gênio criativo da Grécia, ao contrário do que comumente se acredita entre nós, não morreu com a sua Antiguidade clássica, mas continua vivo até hoje e que os poetas gregos modernos não desmerecem dos antigos. A surpresa que Poesia moderna da Grécia causou a leitores que dela nada sabiam convenceu-me de que atingi, embora em modesta escala, o objetivo a que me propus desde o início. Essa antologia me custou cinco anos de trabalho mais ou menos sistemático. Para levá-lo a cabo, não contei com nenhuma ajuda oficial ou institucional. Raspando até o fundo o cofre da poupança, tive de fazer três viagens à Grécia em busca de material bibliográfico, já que no Brasil não há uma só livraria que importe livros de lá. Mas o meu interesse pela poesia neo-helênica não se esgotou após a publicação da antologia. Continuo a traduzi-la regularmente, sobretudo a sua produção mais recente, com vistas a uma nova coletânea, Poetas gregos contemporâneos.

[1986]

[Entrevista com José Paulo Paes (Brasil, 1926-1998), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

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