FM Há uma observação que fazes a
respeito de tua avó materna, no sentido de que ela “era uma católica
praticante: um catolicismo ortodoxo, jamais baianizado”. Sempre me pareceu que
a literatura no Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência
católica. Bem entendido: do catolicismo adotado por nossos escritores e
intelectuais. Figuras determinantes como Alceu Amoroso Lima e Mario de Andrade
quando menos propiciaram um fio de alta tensão entre o que chamas de
catolicismo ortodoxo e baianizado, reorientando a vocação poética de muitos de
nossos escritores, interferindo na própria configuração cultural do país. Qual
a extensão de um prejuízo dessa natureza, em teu entendimento?
LI Não creio que “a literatura no
Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência católica”. Como todos
os países do Ocidente, o Brasil, como civilização, é uma criação do
Cristianismo, cuja maior obra é a própria Europa. Foi o Cristianismo que
colonizou a América, deixando marcas imperecíveis em sua educação, arquitetura,
música, pintura, modo de viver e de morrer etc. Esse impacto civilizatório,
destruindo em muitos casos civilizações milenares, como as maia, asteca, inca,
modelou o sistema de educação e de produção literária e artística. O Brasil,
desde o dia de sua “descoberta”, com a Primeira Missa, seguiu e segue esse
caminho.
Cabe destacar que, no século xix,
a inteligência brasileira em sua maioria seguiu o caminho do Positivismo, e
recebeu influências de Darwin e Spencer, neutralizando poderosamente o selo
católico da nossa civilização, a qual se caracterizava pelo fato de o
catolicismo ser a religião oficial do país. Além do mais, cumpre sublinhar que
essa nova direção literária e artística se disseminou no século xx. O grupo católico (Jackson de
Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Otávio de Faria,
Tasso da Silveira e tantos outros) representa essa projeção de espiritualidade,
numa literatura de forte conteúdo regionalista, paisagístico e de escassa
interrogação existencial. Hoje, com a expansão dos evangélicos e das religiões
e seitas africanas, a influência católica, quer a temporal, quer a espiritual,
diminuiu sensivelmente, e são raros os escritores brasileiros aos quais se
poderia considerar “católicos fervorosos” ou atuantes. Na imensa maioria, eles,
como os pintores e músicos, são católicos históricos e tradicionais (herdeiros
de tradições domésticas) “livres-pensadores” ou declaradamente ateus.
Deve ainda ser acentuado que a literatura não é um caminho único,
e a comunidade literária se irradia em várias e numerosas famílias espirituais,
tanto no plano estético como nos planos político e moral.
FM Bem, não podemos esquecer que
o projeto modernista de nacionalizar o Brasil tinha forte conotação católica,
cujos desdobramentos conduziram ao integralismo. Benjamin Moser, na biografia
de Clarice Lispector, por exemplo, ao referir-se a Plínio Salgado, observa que “como
muitos integralistas, Salgado era fortemente influenciado pelos escritores
católicos que emergiram nos anos 1920, com suas sugestões de nacionalismo
místico”. Havia então a presença da revista A
Ordem, dirigida por Augusto Frederico Schmidt, em um ambiente onde se
confundiam aspectos como a chamada escola introspectiva, nacionalismo místico,
integralismo, em uma mesma sala frequentada por Tristão de Athayde, Mário de
Andrade, o próprio Schmidt, Plínio Salgado, ambiente que em dado momento chegou
a estar sob a coordenação impositiva da Agência Nacional e Lourival Fontes, o
super-homem de Getúlio Vargas no comando do Departamento de Imprensa e
Propaganda. Ainda me refiro ao Benjamin Moser, ao dizer que “a fé católica de
muitos desses escritores levou alguns deles a se associar, em geral
temporariamente, ao integralismo, e a defender certas propostas reacionárias,
como a militância de Vinicius de Moraes em favor do cinema mudo”. Quando
passamos à Geração de 45, o que muda nessa relação com o catolicismo?
LI Não creio que o projeto
modernista de nacionalização do Brasil tenha tido “forte conotação católica”
como você afirma. Esse projeto se inspirou em elementos indígenas e
folclóricos, como o comprova o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e a
redescoberta do barroco mineiro por Mario de Andrade, o qual era, aliás, um
católico tradicional. E a esses elementos de ancestralidade se acrescentou um
tempero de vanguardismo europeu, especialmente o sentimento da velocidade
haurido no futurismo de Marinetti. Observe-se que os modernistas de São Paulo
ignoravam o Nordeste brasileiro e o viam de longe com olhos turísticos. E de “turistas
aprendizes”, para usar aqui uma expressão afortunada de Mario de Andrade.
Plínio Salgado, com os romances em que se utiliza de um processo de
fragmentação da narrativa, e uso imoderado da elipse e do laconismo, é um seguidor
e discípulo de Oswald. Como é um discípulo incômodo, dada a sua condição de
criador do Integralismo (o chamado “fascismo caboclo”), a crítica e os
estudiosos do Modernismo sempre esconderam essa evidência, omitindo seu nome ou
menosprezando-o, com a exceção notável de Wilson Martins que, em sua monumental
História da Inteligência Brasileira,
chama a atenção para a importância seminal de O Estrangeiro no cenário da nossa ficção. Quanto a Vinicius de
Moraes, ele foi uma descoberta de Otávio de Faria, que lhe dedicou parte do
livro Dois Poetas (o outro é Augusto
Frederico Schmidt). Otávio de Faria, autor de um incômodo e instigante ensaio Machiavel e o Brasil, em que denuncia as
nossa misérias políticas, influenciou profundamente Vinicius de Moraes em sua primeira
formação marcada pela sua simpatia pelo fascismo. Eram amigos íntimos e ocorreu
entre ambos uma relação homossexual que foi apagada quando Vinicius se tornou
um dos expoentes da esquerda e do comunismo de salão. O seu interesse pelo
cinema mudo veio de Otávio de Faria, criador do Clube Chaplin, quando estudante
da Faculdade Nacional de Direito. Nada teve a ver com o catolicismo. E há uma
retificação que deve ser feita: Otávio de Faria nunca foi integralista. Ele foi
fascista, assim como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade
foram comunistas, e Rachel de Queiroz foi comunista e depois trotskista num
tempo em que a intelectualidade em sua maior parte não acreditava na
Democracia, considerando-a o regime da burguesia conservadora e infensa às
grandes reformas políticas sociais e econômicas. E além do mais, o Brasil de
1930 até 1945 foi governado pelo estadista autoritário, centralizador e
ditatorial Getúlio Vargas, e na Europa imperavam o nazismo de Hitler, o
fascismo de Mussolini, o franquismo do generalíssimo Franco e várias ditaduras
sul-americanas dominavam a América.
Evidentemente que a inclinação dos escritores católicos ou
de famílias tradicionalmente católicas era pelo fascismo e o integralismo. (“Deus,
Pátria, Família”, era o lema do integralismo. Os integralistas envergavam uma
camisa verde com um sigma que os distinguia, como os nazistas e fascistas).
Quando a Geração de 45 emerge, finda a Segunda Grande Guerra
com a derrocada do nazismo e do fascismo, o debate político passa a um segundo
plano. Pelo menos no seu início, essa geração será formalista e esteticista,
preocupada com a “reconstrução” da poesia e da literatura brasileira. O
nacionalismo modernista será substituído por um subjetivismo crescente e por um
cosmopolitismo de natureza atualizadora. É o tempo da descoberta de Rilke, T.
S. Eliot, Paul Valery, Mallarmé, Ezra Pound, Saint-John Perse, Ungaretti e
outros, que substituíram as devoções modernistas. E estas eram Apollinaire, o
futurista Marinetti e o Blaise Ceadrars que Oswald de Andrade praticamente
depenou em seu Pau-Brasil. Uma coisa
singular é que o Modernismo, teoricamente programado para proceder a uma
atualização da literatura brasileira, foi um dos movimentos mais desatualizados
e desinformados em relação às revoluções estéticas que então se operavam na
Europa e nos Estados Unidos. No grande banquete dos ismos do século XX,
alimentou-se de migalhas.
FM Estamos de acordo que “uma luz
impostora ilumina todas as vidas”. Evidente que não significa com isto falsear
a realidade de forma canalha, mas antes reconhecê-la como uma mescla de razões
e desrazões, anseios e decepções, impulsos e repetições, essências e
trivialidades. Como a poesia te descobre? O que sabias de ti quando começaste a
escrever?
LI Ao longo de minha trajetória
literária, tenho me manifestado talvez exaustivamente sobre a criação poética e
a poesia. E decerto essas manifestações haverão de ser sempre fragmentárias e
incompletas. Para mim, a poesia é uma manifestação da criatividade humana; uma
arte — a arte de fazer versos; o uso supremo da linguagem, já que ela é uma
magia verbal, um “idioma” específico dentro da linguagem não só a comum como
também da linguagem literária da prosa; um testemunho da condição humana; uma
celebração do Universo pelo homem. Dentro desse quadro imemorial, que proclama
a necessidade humana de exprimir-se (inventando e documentando a passagem do
tempo e a sua experiência pessoal), cumpre sublinhar, com a necessária ênfase,
que a Poesia resulta de uma vocação individual e intransferível, que se realiza
e se aprimora através do trabalho, da pesquisa, da experimentação e da
capacidade de renovação diante da tradição. O poeta nasce poeta e se faz e é
feito pela cultura que consegue incorporar ao seu ofício. E ele é apenas um elo
no grande sistema poético do mundo, um grão de poeira numa tradição que vem do
início do mundo e haverá de continuar enquanto este nosso planeta existir. Isto
porque há algo, no mundo e sobre o mundo, que só a linguagem poética tem
condições de exprimir. Há algo, no homem, do homem e para o homem, que só o
poeta tem condições de dizer, através de e com a sua linguagem.
Quando comecei a escrever na adolescência, nada sabia de
mim, a não ser que desejava ser um poeta e escritor, e colocar a minha poesia e
a minha prosa a serviço dos homens, o que significa colocá-la a serviço da vida
e até da mudança do mundo, já que a mim me doíam e me doem a miséria e a
injustiça, a desesperança e a morte.
O importante é que o escritor ou poeta projete em sua obra a
sua experiência, aquilo que Rubén Darío chama de “o tesouro pessoal”. E
converta essa experiência numa linguagem inconfundível.
FM Quais, aos olhos de um poeta
brasileiro, seriam as verdadeiras provas da realidade?
LI A realidade é sempre uma visão
pessoal da realidade. Cada um de nós tem a sua, e trabalha com ela ou para ela.
É, assim, uma representação, um modo de ver. Entendo que cada poeta, desde os
mais exponenciais aos mais modestos e obscuros, projeta em seus poemas uma
determinada visão da realidade, do mundo em que respiram, da vida que levam.
Para mim, até o sonho e a “alienação poética” são realidades, pois se integram
na vida pessoal do poeta e em sua produção. Direi que a visão que tenho do
mundo é a minha realidade. É talvez ou decerto uma realidade pessoal,
intransferível, mas nela cabem ou devem caber as realidades dos outros. Goethe
diz que os homens são seres coletivos. Isto significa que não somos sozinhos
nem estamos sós. Somos nós e os outros. Os outros de hoje e os outros de ontem.
FM Entendes que o cosmopolitismo
da literatura brasileira é uma farsa? Como nos relacionamos com grandes centros
canônicos e não com a grandeza natural da cultura em cada país, que outro
Brasil tens descoberto à sombra dessa máscara?
LI Partamos do princípio e da
evidência de que nós, escritores latino-americanos, somos seres divididos entre
o nosso indigenismo e a nossa ibericidade. Como todos os países periféricos que
constituem a América Ibérica (à qual o Brasil pertence), temos uma língua e uma
etnia europeias (o espanhol, o português) e somos os herdeiros ou usufrutuários
de uma cultura transplantada e da cultura autóctone. E a essas culturas se soma
a cultura milenar que nos veio da África À cultura transplantada — literatura,
música, arquitetura, educação, culinária, modo de viver e de morrer etc. —
conferimos um selo nacional que é a nossa diferença decorrente do nosso
indigenismo. O chamado “cosmopolitismo” de parte da literatura brasileira — como
de resto a dos outros países como Cuba ou México, Chile ou Argentina —
testemunha a nossa ligação transatlântica com a Europa, que, como centro
inarredável de tradição e laboratório de experimentação e invenção, atrai a
nossa atenção, nos abastece com o seu saber e a sua criatividade e contribui
para o nosso aprimoramento. E se funde com o que temos de telúrico e nativo, do
nosso chão. Atualmente, podemos vangloriar-nos de que a produção literária e
artística na América Ibérica já atingiu um ostensivo grau de autonomia e
independência, não pelo que recebemos ou imitamos, mas pelo que criamos e
inventamos. A América Latina se tornou a pátria da imaginação e da
criatividade, cada vez mais apreciada pelos estudiosos, críticos e leitores de
uma Europa que atravessa um período da ostensiva exaustão, após tantos
movimentos renovadores como o simbolismo, o surrealismo, o cubismo, o
futurismo, o expressionismo e outros. A presença de escritores
latino-americanos no fluxo editorial europeu, e ainda a sua presença nos
festivais e congressos realizados na Europa, indica que cada vez mais estamos
sendo reconhecidos pela nossa diferença e originalidade. Com a sua explosão
imaginativa, a diversidade artística, o seu ímpeto testemunhal e documental, a
sua diversidade artística e a sua originalidade manifesta, a literatura,
hispano-americana é cada vez mais apreciada e aplaudida na Europa. Ostentamos,
ainda, uma “irracionalidade” e uma “magicidade” que, pela sua dimensão onírica,
primitiva e arcaica, é outra fonte de atração.
FM O tempo envelhece o criador ou
a criatura?
LI Há poetas e escritores que dão
o melhor de si mesmos na juventude ou na maturidade, e decaem ou se tornam
repetitivos à medida que envelhecem. Outros há que se inovam e dão o melhor de
si mesmos na idade madura e na velhice. É um quadro variado. O importante é que
o poeta ou escritor descubra o momento em que deve silenciar, se é que ele deve
silenciar em algum instante de sua vida.
FM Na pg. 132 do teu livro de
ensaios O Ajudante de Mentiroso
mencionas a tua insularidade como elemento responsável pelo que chamas de “talvez
incômodo ar de estrangeiro no cenário das letras brasileiras”. Restringes a uma
inveja crônica a relutância do meio literário em relação à tua obra e até mesmo
à tua pessoa. O caso se explica assim mesmo, de maneira tão provinciana?
LI No meu caso pessoal, a minha “insularidade”
decorre da circunstância de ser originário de Alagoas, no Nordeste brasileiro —
uma região que se caracteriza pela sua beleza oceânica e litorânea, pela
miséria clamorosa da maior parte de sua população. Acrescente-se a essas
evidências a minha solidão, já que, antes de mim, minha terra natal só produziu
dois escritores de projeção nacional, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. A esses
elementos, acresce o fato de ter seguido, no meu ofício literário e poético, um
caminho que atesta irrefutavelmente a minha diferença em relação à minha
geração e talvez ao próprio legado cultural do Brasil. Costumo dizer que os
escritores são constituídos pelo talento (quando o têm) e pela inveja (sempre).
Mas esta minha frase deve ser acolhida mais como uma boutade. Embora a vida literária seja um ostensivo domínio de
competição e conflitos, e espelhe as virtudes e vícios da condição humana, é
também o território de uma convivência harmoniosa. Ao longo do meu trajeto de
escritor, muitas mãos, algumas gloriosas, se têm estendido para mim,
apoiando-me e abrindo-me caminho. E, de minha parte, tenho procurado proceder
da mesma maneira. Minha vida tem sido um estuário de amizades. E também de
admiração. Sei admirar.
De qualquer modo, sinto-me um sobrevivente, já que
atravessei vários movimentos poéticos sem aderir a eles — o que não foi o caso
de grandes poetas empenhados em obter o aplauso ou a cumplicidade dos jovens —
e assisti ao sumiço e naufrágio desses movimentos. Confesso que sou muito cioso
de minha diferença, a qual se projeta no meu trabalho e na minha maneira de
conceber a literatura e a poesia, e deve constituir o meu selo pessoal de poeta
e escritor, o que me distingue dos meus queridos confrades.
FM Outro dilema curioso que
encontramos na literatura brasileira diz respeito a este seu aspecto livresco —
uma literatura “que só sabe respirar o ar abafado dos livros” —, como tão bem
mencionas. O escritor brasileiro, em geral, rejeita a si mesmo como elemento
constitutivo da relação — que só se realiza, por sinal, de maneira visceral —
entre realidade e literatura. Há o prejuízo imediato da superficialidade e um
outro, por efeito de decorrência, de ausência de diálogo com as grandes
correntes internacionais. Apontamos aqui as resultantes — teu diagnóstico é
perfeito, ao dizer que esta literatura “não pode fazer a leitura do mundo” —,
porém, qual é a matriz em que se origina este desvio?
LI Um escritor deve ser livresco
e antilivresco. Deve ser guiado pela evidência de que a literatura e a poesia
são problemas de cultura e não de mera sensibilidade. Um poeta, a meu ver, deve
ser o protagonista mais culto da comunidade literária, devendo conhecer um
legado que vem de Homero a Dante, de Virgilio a Camões, de Quevedo a
Shakespeare e se estende até os nossos dias. O conhecimento de outras línguas é
para mim fundamental, já que a tradição cultural da língua portuguesa era
insuficiente para as minhas necessidades de expressão e educação cultural. Já o
espectro da língua espanhola é diferente. Você pode ser um grande poeta ou
romancista em língua espanhola sem necessitar conhecer outras línguas, já que
no passado hispânico há Cervantes e Quevedo, Lope de Vega e Garcilano de la Vega , Fray Luis de Leon e
Rubén Dario, Góngora e Antonio Machado, e centenas de outras referências
basilares.
Por outro lado, o escritor deve respirar o ar da vida, da
convivência, o mundo dos outros, pois nele é que se abastece para a sua criação
poética e literária. E cada poeta ou prosador faz a sua leitura do mundo — não uma leitura global e total do mundo, que
é muito vasto e inapreensível. Lembro o verso magistral de José
Martí: “Dos patrias tengo yo: Cuba y la noche”. Nós, poetas, temos sempre a nossa Cuba
(o nosso Brasil, o nosso México, o nosso Chile) encravada em nossos corações. E
temos a noite: o território das escuridões e constelações, dos sonhos e
pesadelos, da interrogação existencial, da indagação cosmológica, da fusão
amorosa, do amor e do ódio, de nossa condição humana.
FM Em 2002, quando Walter Galvani
recebeu o Prêmio Casa das Américas, em entrevista concedida a Fabrício
Carpinejar (Rascunho, junho de 2002),
o romancista comentou haver sentido restrição da parte da mídia brasileira, que
ele supõe tenha sido em relação ao regime cubano, observando que “a divulgação
em si não foi à altura do prêmio, que tem prestígio e significado internacional”.
Mais recentemente ganhaste o mesmo prêmio. Como há reagido à premiação a
imprensa brasileira? Acreditas que este prêmio tenha perdido prestígio
internacional?
LI O Brasil é um grande gueto
literário e linguístico. A literatura brasileira é completamente desconhecida
no Exterior. Alguns poetas e novelistas são editados e apreciados,
individualmente, na América Hispânica e em alguns países da Europa, mas esse
conhecimento de criações artísticas individuais não chega a se configurar na
presença de um país (ainda exótico) e de uma literatura. No plano interno o
desconhecimento é ainda mais pungente. As tiragens dos nossos livros literários
são quase sempre exíguas. Predomina no mercado o livro estrangeiro, especialmente
o best-seller planetário, sinal
inequívoco da colonização cultural e da dominação comercial por editores
multinacionais. A atividade literária no Brasil é cosmética, decorativa,
ornamental. Ser escritor no Brasil é uma coisa muito melancólica.
FM És um dos poucos autores
brasileiros com trânsito livre nos países hispano-americanos. Transfiro para ti
a pergunta que quase sempre me fazem, acerca do indigesto silêncio que marca as
relações culturais do Brasil com esses países. Quais os motivos da pouca (ou
nenhuma) atenção que nossos intelectuais, sobretudo eles, dão à poesia
hispano-americana?
LI Não posso nem devo esconder que
a minha condição de “poeta ibero-americano”, decorrente de minha presença em
numerosos festivais de poesia e também de sucessivas traduções de minha poesia,
em antologias poéticas ou em livros autônomos, muito me alegra. Esse trânsito,
iniciado em 1980, quando Carlos Montemayor fez editar no México a antologia La
Imaginária Ventana Abierta, e que hoje alcança a Espanha,
onde a minha obra poética começou a ser traduzida de maneira intensiva, é
realmente um trânsito pessoal. Várias causas podem ser atribuídas ao silêncio
do Brasil. Menciono a circunstância de que a língua espanhola só agora, no
governo Lula, começou a ser ensinada nas escolas. Até antes da Segunda Grande
Guerra, os escritores brasileiros, quando sabiam francês, ensinada nos
colégios, se voltavam para França. E quando só conheciam o português,
contentavam-se com as traduções estrangeiras e as produções existentes no
idioma nativo. O exílio de incontáveis professores e escritores brasileiros nos
países da América Hispânica, durante a ditadura, instaurada em 1964, estimulou
a curiosidade em torno das literaturas desses países. Mas o caminho da
descoberta haverá de ser longo e demorado, e literaturas ricas e vigorosas de
uma América que é hoje a pátria da imaginação e da poesia haverão de ser
consumidas pelos escritores e leitores brasileiros. Cabe ainda sublinhar a
inoperância dos mecanismos culturais destinados a promover a nossa literatura
no Exterior, o que estabeleceria uma contrapartida proveitosa com as demais
nações hispano-americanas.
É notório que a poesia produzida em grandes países do
Ocidente está hoje esgotada e necessita de uma transfusão que a América ibero-americana
tem condição de oferecer.
A repercussão escassa do Prêmio da Casa das Américas a um
escritor brasileiro deve ser atribuída à visão provinciana que o Brasil tem do
próprio Brasil, e que se irradia por todos os setores. O prestígio dos prêmios
da Casa das Américas nos países hispano-americanos e na Espanha e em outros
países da Europa é incontestável.
Quando fui distinguido com o Prêmio Literatura Brasileira da
Casa das Américas, a repercussão nos países hispano-americanos e na Espanha foi
confortadora. No Brasil, foi irrisória.
O insulamento cultural do Brasil é uma realidade
incontestável. E precisamos de pontes, neste mundo cercado de outros lados.
[2010]
NOTA
Em
um estranho e imenso país chamado Brasil costuma ocorrer coisas por vezes muito
curiosas e até preocupantes. Ao longo de
minhas viagens a países hispano-americanos, convidado a participar de eventos
literários, sempre me surpreendia a maneira afetuosa com que se falava em Lêdo Ivo (1924-2012).
A princípio me parecia um mal entendido, porque a suposição correta era de que
seriam outros os famosos a alcançar projeção internacional. Mas logo vou
descobrindo que a raiz de tudo está na pouca (ou nenhuma) atenção que
escritores brasileiros dão à América Hispânica, um comportamento que reflete o
alto grau de provincianismo de nossa cultura. De qualquer maneira, fui
constatando a freqüência com que o nome de Lêdo Ivo me era indagado e me
encabulava o fato de não conhecê-lo pessoalmente ou mesmo haver sequer trocado
alguma correspondência com ele em minha vida. Pior: eu praticamente não
conhecia sua poesia. Um dia finalmente coincidimos em Santo Domingo e
fomos apresentados por nosso comum editor mexicano, José Angel Leyva. Sua
figura carismática, amiga, divertida, rapidamente instalou entre nós boa
amizade e mútuo respeito intelectual. De regresso ao Brasil, Lêdo me enviou
seus livros e avançamos em nosso diálogo, sempre me inquietando o fato de que
sendo autor tão reconhecido nos países vizinhos não gozasse do mesmo prestígio
no Brasil. Em 2009 recebi convite da Casa das Américas, para ir a Cuba integrar
o júri de seu famoso prêmio literário. Ao encontrar entre os livros inscritos a
poesia de Lêdo Ivo, percebi a oportunidade que se abria, espécie de acaso
objetivo que nos daria então a honra de premiá-lo através de um livro seu
inscrito, Réquiem, livro este que
inclusive vinha de duas belas edições no exterior, precisamente no México e na
Itália. Posteriormente o poeta ganharia também o Prêmio de Poesia do Mundo Latino Victor Sandoval
(México, 2008) e Prêmio Rosalía de Castro (Espanha, 2010).
Publicado em países como Espanha, Dinamarca, Itália e Estados Unidos, assim
como, em países hispano-americanos, Chile, Venezuela, Peru e México. A seguir,
uma breve conversa nossa sobre alguns aspectos de sua vida e da literatura
brasileira. Abraxas
[Entrevista publicada em Invenção do Brasil.
São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
Nenhum comentário:
Postar um comentário